quinta-feira, 30 de outubro de 2014

0009) A memória do leitor - 2

 
A história de detetive clássica (ao estilo de Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, Dorothy Sayers, etc.) se baseia em tramas criminais minuciosamente arquitetadas que resultam num crime aparentemente impossível, ou absurdo, ou sobrenatural.  Passado o choque inicial de incredulidade, cabe ao detetive sair checando cada pista e cada depoimento e no final reconstituir a história, mostrando o que realmente aconteceu e dando uma explicação cabal para cada detalhe polêmico ou ininteligível.



 
Nem sempre é assim, claro.  Raymond Chandler, em suas “Doze Anotações sobre a Narrativa de Mistério” (incluídas na minha tradução para a Alfaguara de A Dama do Lago) faz severas críticas aos mistérios clássicos.  Sobre um livro famoso (e um dos meus favoritos), Assassinato no Expresso do Oriente (1934) de Agatha Christie, ele afirma, com razão, que “...toda a preparação do crime requer uma combinação tão caprichosa de circunstâncias que jamais poderia parecer um fato real.”

A crítica é muito justa. Isto me faz gostar menos do livro?  De jeito nenhum.  O leitor do policial clássico sabe que o realismo daquelas histórias é meramente de verniz, de superfície, e que estruturalmente são narrativas com um altíssimo grau de improbabilidade. Trata-se de um problema de lógica, e os personagens estão ali como atores interpretando papéis numa peça.

Nessas mesmas “Doze Anotações...” Chandler faz reparos justos a outras narrativas clássicas, como “A faixa malhada” de Doyle e “A carta roubada” de Edgar Allan Poe (sempre em nome da plausibilidade). Há outra menção, no entanto, que produziu uma sincronicidade com algumas das minhas memórias pessoais. Chandler afirma a certa altura:

Dado que há leitores com diferentes formas de inteligência, alguns serão capazes de solucionar um crime muito bem disfarçado, e outros se deixarão enganar pelos mais transparentes enredos. (Será que “A liga dos cabeças vermelhas” poderia iludir um leitor moderno?)
Num post anterior (“A memória do leitor – 1”) reproduzi a capa do Mistério de Magazine de Ellery Queen de setembro de 1962 (vai aqui embaixo, de novo), onde li o meu primeiro conto de Chandler, “O último caso de Philip Marlowe” (“The Pencil”). 


 
Na mesma revista, como pode ser visto na capa, foi publicado um texto de Thomas L. Stix intitulado “Os 7 erros na Liga dos Cabeças Vermelhas”, que é uma breve e impiedosa desconstrução dessa aventura famosa de Sherlock Holmes.

Se o leitor não conhece esse conto, não será muito difícil encontrá-lo; faz parte da coletânea As Aventuras de Sherlock Holmes, que tem várias edições brasileiras, sendo a melhor a edição da Zahar (2010), comentada por Leslie S. Klinger.  É a história de Jabez Wilson, um homem de cabelos ruivos que consegue um emprego meio bizarro, onde sua missão é copiar à mão a Enciclopédia Britânica, mas o emprego só poderia ir para alguém com cabelo ruivo.  Sherlock Holmes consegue descobrir um plano diabólico de assalto por trás dessa atividade aparentemente sem nexo.

Nas imagens abaixo reproduzo o texto de Thomas L. Stix, apontando o que ele considera 7 erros graves de lógica, de continuidade e de bom senso, no conto de Doyle. (No final, Ellery Queen, na pele do editor Frederic Dannay, não resiste a apontar um oitavo erro ou inconsistência do conto.)  (Clique na imagem para ampliar)









Não sei se houve intenção do editor de publicar lado a lado o conto de Doyle, a desconstrução do conto de Doyle, e um conto de Chandler, que em seus manuscritos ele havia criticado. (As “Doze Anotações...” nunca foram publicadas em vida de Chandler; foram encontradas entre seus papéis, e sua primeira versão é datada de 1949.)
Tenho uma lembrança vívida, não de ter lido o conto de Chandler nessa revista, mas de estar indo no ônibus do bairro do Monte Santo, em Campina Grande, rumo ao apartamento de minha tia Adiza, ler esse texto de Stix sobre o conto de Doyle e me ficar maravilhado (eu tinha doze anos) pela possibilidade de alguém fazer um desmonte crítico de uma daquelas histórias que para mim eram mais definitivas e irretocáveis do que as Escrituras.



(ilustração de Sidney Paget para "The Red-Headed League")



Jorge Luís Borges disse que o romance policial criou um novo tipo de leitor, o leitor desconfiado, o que lê não apenas para fundir seu espírito ao espírito do autor que conta a história, mas também para desconfiar dele, suspeitar dele, saber que o autor de um romance policial é um cara que está jogando um jogo e não merece muita fé.  Eu diria que a leitura desse texto nessa revista me transformou de certo modo num crítico, porque pela primeira vez alguém pegou um dos meus monstros sagrados (Doyle) e mostrou que ele também errava; tal como “também cochilava o bom Homero”. 



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

0008) A memória do leitor - 1




Um sebo de livros é um dos lugares preferidos dos andróides quando querem alugar memórias alheias.


Existem livros que um dia terão que ser relidos na mesma edição (já que geralmente não é possível ser o mesmo exemplar) que leu pela primeira vez.  Há livros que eu já tenho na língua original e numa boa tradução, mas não resisto quando encontro a versão (às vezes mais rudimentar e descuidada) que li pela primeira vez: a mesma capa, o mesmo papel, a mesma mancha gráfica, a mesma história com as mesmas pessoas.

Em setembro de 1962, quando eu morava na minha cidade natal de Campina Grande, eu tinha recém-conhecido o Mistério Magazine de Ellery Queen (Editora do Globo, Porto Alegre), a melhor de todas as revistas de contos policiais que colecionei. 

Eu, nos meus doze anos recém-completados, lia aquilo tudo sem conhecer muitos autores além dos monstros sagrados como Doyle, Christie, Queen.  E no índice nesse número de setembro vi listado o conto “O Último Caso de Philip Marlowe”, escrito por Raymond Chandler, nome que eu nunca vira mais gordo.



 
Provavelmente achei uma coisa ousada esse conceito de um último caso de um detetive, quando é justamente o contrário que o gênero requer – a continuação infinita, ou pelo menos inalcançável.  Que detetive fraco era esse, que o autor condenava com uma penada tão radical?  Anos depois, quando Agatha Christie fez o que fez com Poirot, isso me voltou à mente.

Bem, eu tinha doze anos, Poirot era tão real quanto João Goulart.  Nem pensei nisso tudo: fui olhar lá dentro.  Essas curtas apresentações dos contos do MMEQ eram geralmente escritas por Frederic Dannay, a metade ploteira de Ellery Queen (Manfred B. Lee era a metade estilosa), e responsável quase sozinho pela seleção e apresentação dos contos da revista, que era empreendimento dos dois mas tocado pessoalmente por ele.  No texto de apresentação do conto, disse Dannay: “Esta não foi apenas a última história de Raymond Chandler sobre Philip Marlowe, como também a última que escreveu antes de morrer.”






O conto hoje é publicado com o título “The Pencil”, e na revista da Editora Globo não se menciona o nome do tradutor. (O MMEQ raramente mencionava o tradutor. O Magazine de Ficção Científica, da mesma editora, entre 1970-1971, sob a direção de Jeronymo Monteiro, já mencionava o tradutor de cada conto).

É interessante você olhar para um conto que você sabe que já leu mas é como se tivesse havido uma lavagem cerebral da KGB, você não tem a menor impressão de já ter visto aquilo. Tenho livros que li trinta anos atrás, e quando pego hoje reconheço meu jeito de sublinhar.  Li aquilo, mas não lembro nada, é como se fosse outra pessoa.  Em alguns casos, se eu pegar e começar a reler de fato, a sério, começa a voltar tudo.  Às vezes lembro onde eu estava, quando li aquela página.

Este número do EQMM, aliás, não é mesmo exemplar o que eu li quando garoto.  Esse já se desfez em química há muito tempo.  Mas a Praça Tiradentes está aí para isso mesmo, ou a Rua da Roda, ou o Maleta.  Esse exemplar prístino me basta, como o rouxinol bastava a Keats.  Não lembro nada do conto de Chandler.  Não lembro como acaba o conto de Cornell Woolrich, um dos meus autores favoritos, anunciado aí na capa, embora tenha reconhecido o início da história quando reli alguns parágrafos.

Tem histórias de nomes conhecidos como Nicholas Blake (não que eu os conhecesse naquele tempo), Norman Daniels.  Mas tem alguns contos que eu lembro como se fosse hoje.

Memória de leitor é uma coisa engraçada.

Na época eu tinha o costume de, junto ao número da página, escrever minha nota, que geralmente ia de 7 a 10.  Eu devo ter dado 10 ao conto “Desta Urtiga”, de Robert Twohy, que até hoje não sei quem seja, e acho que nos primórdios do Yahoo fui atrás dele sem sucesso.




Vou contá-lo aqui, sem ter relido.  Basicamente (como se diz em inglês), tocam a campainha na casa de um cara e quando ele abre é a polícia.  A vizinha fofoqueira ouviu ruídos de briga, grito feminino, silêncio suspeito, telefonou alertando. Ele ri, diz que teve uma altercação com a esposa, e ela saiu durante a noite, aborrecida, com uma mala feita às pressas, e ele não sabe para onde ela pode ter ido.

Os policiais não têm um mandado (é uma espécie de varinha mágica das narrativas fantásticas norte-americanas, uma coisa bem cordel, porque sem ele um policial não entra em lugar nenhum  e com ele entra em qualquer lugar e pinta e borda conforme lhe aprouver).  Mas ele pede que entrem, façam o favor, a casa está à disposição, percorrem os aposentos. Quando ele começa a se despedir, o policial pergunta pelo quintal.  Ele diz que não tem nada, é um quintal vazio. Eles insistem. Vão até lá.  Tem uma casinha. Ele ri, nervoso: “Oh, oh, não é que esqueci o velho depósito de ferramentas?!  Há séculos que não entro ali.”

E lá vão os policiais, desta vez os dois vão na frente e o marido os acompanha arrastando os pés.  Abrem, olham, veem o chão de terra todo revolvido, e depois tapado.  Perguntam.  Ele diz a primeira coisa que lhe vem na cabeça, ou talvez não, ele já sabia o que ia dizer.  Foi o cachorro, ou o coelho da casa, que morreu ontem, e teve que ser enterrado.  Os policiais se entreolham.  Quem enterrou o bicho?  Ora, fui eu, claro.  O senhor não disse que não entrava aqui há séculos?  Modo de dizer, tenente.  Os policiais se entreolham.

Um leva ele lá para fora com um cerca-lourenço qualquer e o outro começa a cavar. Acha o que? Os ossos do coelho.  Os dois ficam enfarruscados, o marido aliviado por ver que tudo se confirma, despedem-se à porta, faróis vermelhos somem na longa rua. Ele volta para o quintal, assobia, e ouve a voz da vizinha fofoqueira, que Faye Dunaway perde, dizer que está tudo pronto.  Puxam-empurram de volta por cima do muro o corpo envolto no rude sudário.  Ela pula, os dois arrastam a carga até o buraco que acaba de ser reaberto, cavam mais um pouco, põem ali a carga, e se abraçam com um beijo de filme noir.  Um dos dois recita:

-- “Desta urtiga, que é o perigo...”

E o outro completa:

-- “Colhemos esta flor, a segurança.”

Termina o conto.



Foi este o conto a que eu devo ter dado nota dez, porque mesmo que eu o tenha relido depois não o li mais que meia dúzia de vezes na vida inteira, e certamente não nos últimos dez anos.  Se alguém achar essa revista e comparar com minha história, vai ver um bom experimento de memória literária. Que poderia ser um ramo de estudos independente: os modos como recordamos (sempre fragmentadamente, metamorfoseadamente) as histórias que lemos.

Esse conto nada tem a ver com Chandler.  É outra fase da literatura popular, que atingiu ao mesmo tempo a literatura policial e a ficção científica, e certamente outros gêneros.  Tecnicamente, é a passagem dos pulp magazines, que eram grandes, rústicos, e tinham literatura equivalente, pelas revistas digest, que é aquele formato que conhecemos pela revista Seleções.  De 1950, a FC e a literatura policial começaram a ser praticadas nesse novo formato, que visava outro público. 

“Desta Urtiga” é um dos subgêneros que proliferaram, e que eu descreveria como o gênero de O Que Fazer Com O Cadáver.  Há milhares de contos sem outro propósito senão inventar uma variante de solução para este problema, uma variante que pelo menos seja curiosa o bastante para convencer um editor a publicá-la.




Matar o cônjuge, na literatura policial, chega a ser uma figura de linguagem, algo tão frequente que estamos sempre prontos para nos deparar com seu retorno.  Faz parte da maneira de ser.  Maridos matavam esposas, esposas matavam maridos, com um remédio “batizado” ou um dardo por controle remoto, mas ninguém via isso como um fato sangrento, era uma mera função proppiana, algo que tinha de acontecer para que a história existisse.

Nada me era mais estranho (e acho que continua assim até hoje) do que a idéia de matar planejadamente outra pessoa.  Mas o conto policial me ensinou a poder pensar nisso como um mero elemento de uma história cujo objetivo é outro, e o assassinato da mulher está ali como podia ser qualquer outra coisa. 
Na pulp fiction de Black Mask e outras havia espaço para homens batendo em mulheres (se bem que no geral todos preferissem bater uns nos outros), mas não havia esse espírito rarefeito capaz de ver num assassinato um mero movimento num problema de xadrez.  Era disso que Chandler não gostava.  Ele gostava do realismo, de pessoas movidas por coisas profundas, que tornava quase impossível elas procederem de outra forma.  Ele não gostava da frieza, queria que a vida pelo menos nos livros fosse algo menos cerebral do que o xadrez.



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

0007) As biografias de Chandler - 1



Acaba de ser traduzida no Brasil a biografia Raymond Chandler – Uma Vida (São Paulo: Benvirá, 2014), de Tom Williams.  Ao que eu saiba, é a primeira a ser traduzida entre nós, pois não tenho notícia de traduções brasileiras das duas principais: The Life of Raymond Chandler de Frank MacShane (1976) e Raymond Chandler – a biography de Tom Hiney (1997).



Estou lendo a biografia escrita por Williams. Me parece correta no levantamento das informações e nos julgamentos, inclusive os literários. Chandler tem uma vida bem documentada, viveu cerca de dois terços de sua vida na Califórnia, de modo que rastrear seus fatos é apenas trabalhoso. Além disso, deixou uma gigantesca correspondência, o que ajuda a reconstituir suas idéias, emoções e expectativas em diferentes momentos da vida.

Estou ainda na página 200 do livro, ou seja, durante a II Guerra Mundial, quando Chandler está escrevendo A Dama do Lago. Algumas coisas que me chamaram a atenção neste biografia, em relação às outras. Desta vez me ficou mais clara a relação familiar de Chandler, na infância, com a opressiva família irlandesa de sua mãe. A mãe era mal-vista porque separou-se do marido, o que naquele tempo era uma mancha na honra familiar.  Williams dá mais atenção a este lado; já a biografia de Hiney é superior em sua descrição do colégio de Dulwich, onde ele estudou, e que teve papel crucial na sua formação.



(Chandler estudante)


O livro de Williams tem muitas qualidades, mas tem um cacoete-de-biógrafo que me incomoda.  Quando escrevemos sobre a vida de outra pessoa num passado distante temos que fazer suposições o tempo inteiro, e nenhum biógrafo (nenhum) resiste a fazer inferências, suposições, etc. e formulá-las como se fossem uma verdade tranquila e aceita.

“Na véspera de Waterloo, Napoleão estava confiante mas inquieto, pois a vitória dependia de muitos fatores.  Ele demorou a conciliar o sono, mas sabia que precisava recuperar as energias.”

Isso ocorre nas biografias romanceadas, aquela que tentam contar uma história real como se fosse algo acontecendo diante dos nossos olhos, com direito inclusive a dizer o que Fulano estava pensando duzentos anos atrás.


É um recurso legítimo?  Talvez sim, até porque se quisermos desmontá-lo radicalmente (questionar o direito ou a capacidade do biógrafo de imaginar algo que não presenciou ou não ficou documentado) o gênero se acaba.  Todo biógrafo romanceia.

Tom Williams tenta evitar esse excesso de liberdade, mas usa para isto o salvo-conduto da abordagem condicional:

(Sobre o casamento de Chandler e Cissy): A cerimônia foi realizada em 6 de fevereiro de 1924 por Carl S. Paton, um ministro da região, e teve como testemunha a irmã de Cissy, Lavinia. Deve ter sido um evento pequeno, apenas para alguns colegas de trabalho, amigos que Ray fez na guerra e possivelmente Alma Lloyd (pag. 107).


A partida de Ray da Inglaterra havia deixado Florence [sua mãe] por conta própria. Separada de seu filho e isolada por sua família (...) ela deve ter se sentido solitária, até mesmo abandonada (pag. 73).
É frequente no livro o uso dessas expressões tipo “deve ter sido”, “provavelmente pensou que”, “certamente decidiu que”, etc.  Williams parece ter um cuidado permanente em deixar claros os limites de suas suposições, mas não resiste a fazê-las. Às vezes, o resultado é que biografias assim passam para o leitor (para mim, pelo menos) a imagem de um biógrafo que não tem certeza do que afirma. Isto, contudo, só ocorre porque ele deixa claro que não passam de suposições. Quando o biógrafo romanceia sem remorsos, a gente nem percebe.









segunda-feira, 6 de outubro de 2014

0006) O poder e o dinheiro



Existe uma semelhança espantosa entre a Califórnia de 1940, onde acontecem as aventuras de Philip Marlowe, e o Brasil de 2014.  Política, poder, finanças, corrupção, polícia, drogas, crime, imprensa, mídia ambiente.  A cada capítulo a gente encontra um texto, escrito há mais de 60 anos e em outro país, que parece uma continuação das matérias que acabamos de ler no jornal de hoje.

No capítulo 32 de O Longo Adeus, Philip Marlowe faz uma visita ao milionário Harlan Potter, uma espécie de “Cidadão Kane” local, dono de um império financeiro e de cadeias de jornais. Potter é o ex-sogro de Terry Lennox, o amigo cuja provável morte Marlowe está tentando esclarecer.  O milionário chama o detetive para explicar-lhe que ele está se metendo demais onde não é chamado.
"Nós vivemos no que se chama uma democracia, governada pela maioria do povo.  É um ideal muito bonito, pena que não funciona.  As pessoas elegem, mas é o partido quem nomeia, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, precisam consumir muito dinheiro. Alguém tem que lhes dar esse dinheiro, e esse alguém, seja um indivíduo, um grupo financeiro, um sindicato profissional ou qualquer outra coisa, espera algum tipo de consideração em troca.  O que eu e outras pessoas do meu tipo esperamos é que nos deixem viver nossas vidas com decência e privacidade.  Sou proprietário de jornais, mas não gosto deles.  Considero cada um deles uma ameaça permanente ao pouco de privacidade que me resta.  Seu choro constante pedindo liberdade de imprensa significa que, com poucas e honrosas exceções, eles querem liberdade para faturar com escândalos, crimes, sexo, sensacionalismo, ódio, duplos-sentidos, e todos os usos financeiros e políticos da propaganda.  Um jornal é um negócio cujo objetivo é acumular lucros através da renda de publicidade.  Isto vai depender da sua circulação, e o senhor sabe de que fatores a circulação depende.”
Potter é um desses potentados sombrios e vampirescos que Chandler gostava de retratar.  Seus ricos raramente são joviais, extrovertidos, populistas.  O general Sternwood (O Sono Eterno), Mr. Grayle (Farewell, My Lovely), Potter, são todos homens soturnos, sem alegria, repletos de zonas de sombra.

Potter continua:
“Existe algo peculiar acerca do dinheiro,” continuou.  “Em grandes quantidades ele tende a ganhar uma espécie de vida própria, até mesmo uma auto-consciência.  O poder do dinheiro fica muito difícil de controlar.  O homem sempre foi um animal à venda.  O crescimento das populações, o custo enorme das guerras, a pressão incessante dos impostos e seus confiscos... todas essas coisas o tornam cada vez mais venal.  O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não pode se dar o luxo de ter ideais. Ele tem que comprar comida para a família.  Em nossa época temos visto um declínio acentuado tanto na moral pública quanto na privada.  Não se pode esperar qualidade de pessoas cuja vida vem sendo submetida à falta de qualidade.  Não se pode esperar qualidade numa produção em massa.  Ela seria indesejável, por fazer as coisas durarem mais tempo.  Assim, no lugar dela coloca-se estilo, que é uma burla comercial destinada a produzir obsolescência artificial.  A indústria de massas não poderia nos vender seus produtos no ano que vem senão fazendo com que o que foi comprado hoje esteja caduco daqui a um ano.  Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais reluzentes do mundo.  Mas nessa cozinha branca e adorável a dona-de-casa média da América não sabe preparar uma refeição que se possa comer, e o adorável banheiro reluzente serve apenas de receptáculo para desodorantes, laxantes, pílulas para dormir, e todos os produtos desse golpe de vigaristas que se chama indústria dos cosméticos.  Fazemos os mais sofisticados embrulhos do mundo, Sr. Marlowe.  O que vai dentro deles é, em sua maior parte, lixo.”
Qualquer semelhança com o Brasil não é coincidência, é mera continuidade.







terça-feira, 30 de setembro de 2014

0005) Os tradutores de Chandler - 1







Carta de Chandler para Bernice Baumgarten (1950):
Acabo de receber a cópia da tradução italiana de The Little Sister, publicada pela Mondadori. Espero que você tenha uma cópia aí no seu escritório, para dar uma olhada. Aos meus olhos, parece um trabalho dos piores. (...)  Meu italiano, admito, é muito superficial, mas só na primeira página sou capaz de perceber sete ou oito erros – o tipo de erros que sugere que o tradutor pode ter algum inglês de nível colegial, mas não entende nada da linguagem que eu uso. Parecem ser erros de entendimento. Além disso, todo o primeiro parágrafo do livro foi cortado, e há outras omissões no primeiro capítulo.

Na lista de personagens, por exemplo...

Cabe aqui uma explicação, porque leitores mais recentes não devem saber que “Lista de Personagens” era algo que os romances policiais de antigamente obrigatoriamente traziam, entre o índice e o primeiro capítulo: nome, breve descrição de quem é e que função ocupa no livro, e a página em que aparece pela primeira vez.  Muito útil, quando bem feito. Vamos em frente, driblando os spoilers:

... por exemplo, acho idiota dizer que [X] é irmã de [Y]. Isto é algo que não deveria ser revelado antes de ser dito na própria história. Ele diz que o dr. Lagardie ér um funcionário da polícia, juntamente com os dois detetives. Isso deve ser uma total falta de entendimento.  Diz que Ballou é um produtor, em vez de um agente.  A descrição da mosca varejeira azul está toda errada; não faz nem um esforço para traduzir o que eu escrevi. Um “bar” não é um mesmo que uma “drugstore”. Dizer que um elevador “funciona” não quer dizer que está livre. 

Depois da linha “Better try the University Club”, na página 3 do meu livro, aqui está o que o tradutor pôs, em vez do que eu escrevi: “Eu sei que há um par de detetives lá, mas não acho que você teria sucesso em persuadi-los para trabalhar para você.”  Isso, faça-me o favor, pretende ser uma tradução italiana de “I heard they had a couple left over there,” (isto é, cavalheiros) “but I’m not sure they’ll let you handle them.” No fim desse capítulo, eles põem “fechou a porta” onde deveria haver “trancou a porta”.  A coisa inteira é simplesmente ridícula,  E tudo isso em uma coluna, sendo metade numa única página.  Deus sabe o que vem pela frente.

Chandler era famoso pela sua ranzinzice, e nunca poupava reclamações quando alguma coisa não lhe agradava. Julian Symons disse uma vez: “Ele se ressentia enormemente de qualquer crítica negativa, embora estivesse sempre pronto a fazê-las a respeito de alguém.”

Os erros que ele aponta são os errinhos minúsculos que toda tradução tem em sua primeira versão, quando o tradutor está fazendo o primeiro esboço. O defeito, no caso, é que a tradução provavelmente foi mal revista.  Um bom revisor teria ajeitado isso tudo, ou o próprio tradutor, se tivesse tido um prazo melhor, ou fosse mais bem pago – mas olha só, lá vou eu acampar uma teoria inteira numa suposição.


Não sei quando saíram as primeiras traduções de Chandler no Brasil (eu o li pela primeira vez, na adolescência, nos livros da Colecção Vampiro, da Editora Livros do Brasil, de Lisboa).  A única menção que ele faz a traduções em português é esta, numa carta para Roger Machell (um amigo em Londres), em maio de 1954:
Estou anexando uma carta de um agente literário português em Lisboa, que pode ser do seu interesse.  O único detalhe que me intrigou foi sua afirmação de que leitores portugueses não gostam das traduções brasileiras.  Tenho certeza de que isto é muito provável, uma vez que as línguas sul-americanas devem ter se afastado consideravelmente dos padrões da pátria original.


sábado, 27 de setembro de 2014

0004) O sorriso do detetive





O “Estado de São Paulo” publicou hoje uma matéria de Ubiratan Brasil sobre o relançamento da obra de Chandler pela Alfaguara, com as minhas traduções. Aqui:



A matéria é ilustrada com um clip do trailer do filme The Big Sleep (“À Beira do Abismo”) de Howard Hawks, que começa com uma divertida cena metalinguística. 


Philip Marlowe (Humphrey Bogart) entra na livraria de Geiger (local importante da história) e diz à moça que procura um livro de ação e suspense, “parecido com O Falcão Maltês”.  Ela diz: “Bem, temos este aqui, que é ainda melhor do que O Falcão MaltêsÉ o mais novo best-seller de Raymond Chandler, The Big Sleep.






Marlowe / Bogart abre o livro, começa a ler em voz alta, e o áudio se funde com a voz de Marlowe, já numa cena do filme:


“Às vezes me pergunto que lance estranho do destino me tirou da tempestade para aquela casa solitária nas sombras...”


Chandler gostava da adaptação feita por Hawks (pelo menos “a primeira metade”, que é fiel ao livro), e já a citou como exemplo de como fazer um bom filme policial.


Quanto a Bogart, o escritor o aprovou: “Ele consegue parecer perigoso mesmo sem uma arma na mão.”




Bogart tinha de fato um aspecto ameaçador, mas talvez o seu diferencial fosse o humor que ele projetava em suas falas e gestos quando sorria.  Seu sorriso nunca era o sorriso-colgate que vemos hoje nos atores da TV aberta, escancarando dentaduras branquíssimas e reluzentes ao menor pretexto.  Sorrisos tecnicamente ensaiados diante do espelho.

Chandler era muito atento às expressões faciais dos seus personagens, e nada lhe era mais visível do que os “sorrisos novela das sete” que eles dão para Marlowe.


The Big Sleep, cap. 11: 
Ela me deu um daqueles sorrisos que os lábios já esqueceram antes mesmo dele chegar aos olhos.
As mulheres, de quem se exige que sorriam, muito mais do que aos homens, muitas vezes chegam a extremos caricaturais para manter essa pose:

The Big Sleep, cap. 24: 
Então seus lábios se moveram devagar, cuidadosamente, como se fossem lábios artificiais e tivessem que ser manipulados com barbantes.





(Audrey Totter, no filme The Lady in the Lake)




Bogart tinha um sorriso espontâneo, não calculado, que era ainda mais ressaltado pela sua cara feiosa e pelo jeito meio impaciente que ele imprimia a todos os seus personagens.  Quando sorria, estava sorrindo mesmo.
O fato de ele ter feito o Sam Spade de O Falcão Maltês certamente o credenciou para fazer Marlowe, que é um personagem mais complexo e mais bem desenvolvido pelo autor.  Meio sem querer, entrou para o imaginário popular como o detetive durão mas sensível, capaz de ser violento mas jamais cruel.


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

0003) O narrador invisível


 
Do meu prefácio à edição da Alfaguara:


Quando Robert Montgomery adaptou A Dama do Lago  para o cinema em 1947, usou o truque da câmera subjetiva, a câmera que fica no lugar do personagem. A câmera é Philip Marlowe, deslocando-se pelos corredores e pelas ruas, encarando as pessoas, que falam diretamente para ela. Marlowe, interpretado pelo próprio Montgomery, só aparece quando se vê num espelho.  Chandler torceu o nariz diante desse recurso: “É um velho clichê de Hollywood: vamos fazer da câmera um personagem. A todo instante tem alguém que o propõe durante um almoço.”  Isso deu ao filme uma certa qualidade mecânica, mas é possível que Montgomery tenha procurado captar uma impressão fugidia produzida pelos romances de Chandler. Philip Marlowe é o narrador de todas as suas aventuras, mas é o personagem menos visível de todas elas.  É um homem sem mulher, sem amigos, sem família, que mora sozinho, que não tem uma turma de camaradas com quem costuma sair; fala pouco de si mesmo, sabe-se pouco sobre o seu passado, e as descrições de sua aparência física são colhidas em geral de maneira indireta – um policial fazendo anotações e comentando em voz alta, por exemplo. 




(Robert Mitchum como Philip Marlowe)
  

Marlowe foi interpretado no cinema por Humphrey Bogart (elogiado por Chandler), Robert Montgomery, Robert Mitchum, James Garner, Elliot Gould e outros.  Consta que Cary Grant seria a primeira escolha para o papel, se ele tivesse influência a esse ponto. Marlowe é uma voz narrativa com poucos momentos de revelação pessoal.  São muitos os momentos de introspecção em que, sozinho, ele conversa com o leitor e faz reflexões sobre a cidade, sobre as pessoas, sobre a vida em geral.  Revelações sobre si mesmo são raríssimas. É, como naquele filme, uma consciência através da qual vemos o mundo, uma voz que dialoga, um rosto visto de passagem; sabemos o que Philip Marlowe acha da vida, o que pensa dos seus clientes ou das pessoas que interroga, e chegamos até a saber em muitos momentos o que pensa de si mesmo; mas não sabemos quem é.

Saber quem é um personagem é mais uma fantasia de leitor do que uma ambição do crítico, mas alguns personagens são visibilíssimos.  Sherlock Holmes, com todas as suas tintas de melodrama e de thriller, é um personagem de quem só não acompanhamos o raciocínio, mas parece uma pessoa.  Philip Marlowe, comparado a ele, é translúcido.  É uma voz que conta uma história mas cuja origem não se deixa ver.


 
Essa voz que conta os romances de Marlowe é a mesma que inspirou o que se diz ter sido uma das grandes narrações em voice over do filme noir norte-americano, a de Double Indemnity (“Pacto de Sangue”), feita pelo personagem de Fred MacMurray, que na sequência inicial do filme chega baleado e sangrando, entra no escritório, liga o gravador e começa a contar o que lhe aconteceu.   

A mesma voz de Blade Runner, que nem Harrison Ford queria fazer nem Riddley Scott estava querendo autorizar, mas que os produtores exigiram, talvez pensando nos cofres, talvez querendo realizar alguma fantasia de leitor endinheirado.  Queriam ouvir essa voz cínica, desencantada, sardônica, que certamente ouviram num passado remoto.  Isso deu algo de Marlowe a Rick Deckard: a cena em que o andróide lhe quebra os dedos é totalmente Chandler.


A voz acabou desembarcando em Neuromancer, o romance de William Gibson que colocou em uso os conceitos, a ambientação e o tom do mundo cyberpunk.  Gibson não narra na primeira pessoa, mas seus romances iniciais tinham essa narração indireta em tom frio, distanciado, capaz de se envolver mas também de se afastar, a voz cínica, sardônica, desencantada, mas compassiva, e, quando é o caso, com uma honestidade que nem se orgulha muito de si própria.  Perto dos personagens de Gibson, Marlowe chega a ser um sentimental.


(capa de Yukimasa Okumura)

Mas Marlowe não comunica ao leitor seus sentimentos, ele prefere falar dos outros, e nem daqueles de quem mais fala ele revela tudo que está pensando.

Na “Doze anotações sobre a narrativa de misrério”, que aparece na edição da Alfaguara (são doze itens e mais dez adendos discutindo a técnica do gênero), Chandler discute o modo específico de usar essa opacidade do personagem diante do leitor. Aliás, não custa nada pedir desculpas ao leitor por falar de transparência e de opacidade ao tentar descrever um mesmo personagem.  Foi para situações mentais assim que se cunhou a expressão: “Se não for isso é o reverso disso.”

Diz ele:

10. O mesmo se aplica àquelas histórias onde o narrador, na primeira pessoa, é o criminoso. Pessoalmente, devo fazer uma ressalva a isto dizendo que, para mim, a narração na primeira pessoa sempre pode ser acusada de uma sutil desonestidade devido a sua sinceridade aparente e a possibilidade de omitir os raciocínios do detetive enquanto fornece um registro bastante claro das suas palavras e seus atos. O que dá vez a uma pergunta de maior alcance sobre o que é de fato honestidade nesse contexto: ela não é mais uma questão de grau, mais do que um valor absoluto? Acho que é, e que sempre será assim. Independentemente da transparência da narrativa na primeira pessoa, sempre chega um momento em que o detetive já formou suas idéias e no entanto ele não as comunica ao leitor.  Ele guarda alguns pensamentos para expô-los apenas na hora do desenlace, ou da explicação. Ele narra os fatos, mas não a reação a esses fatos na sua mente. Será esta uma convenção aceitável de logro do leitor? Deve ser, porque sem ela o detetive que narra a história não poderia resolver o enigma antes da cena final. Muito raramente há uma obra como The Big Sleep, que não oculta quase nada; o desenlace é uma ação a que o leitor chega juntamente com o detetive. A teorização do que aconteceu segue-se imediatamente.

Marlowe vive despistando os próprios pensamentos, e não parece capaz de gostar muito de alguma coisa ou de alguma pessoa.  De vez em quando tem uns acessos de fúria verbal, como no catálogo de tipos de louras que faz em O Longo Adeus ou em algumas tiradas de oratória contra a polícia.  O catálogo das louras sugere que Marlowe não era mais machista do que qualquer contemporâneo ou vizinho seu, mas esse “bife” recitado pelo personagem é mais coisa do autor do que coisa dele; nesse momento, ele é o boneco-de-ventríloquo do autor, o Chandler das “routines”, das tiradas intermináveis de paródias em voz alta que só não podiam ser chamadas de stand-up comedy porque o escritor as proferia à cabeceira de uma mesa de restaurante cheia de admiradores, fossem roteiristas ociosos de um estúdio ou londrinos endinheirados recebendo um beletrista ilustre.



(Chandler com amigos)

Quando Marlowe faz algumas dessas cenas nada revela de si.  Ele é simplesmente o cara que diz o que o autor está pensando no momento em que escreve.  E mais uma vez Philip Marlowe se esfuma diante dos nossos olhos: o vulto que avistamos era o vulto do autor.  Mas ficamos satisfeitos quando o autor irrompe dessa forma, porque o autor era muito mais lúbrico e muito mais romântico do que seu intangível narrador.  No fim, ficamos sem ambos.  O personagem é um espaço vazio por onde o autor passou e desapareceu.


("Self" by Michael Morgenstern)


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

0002) Traduzir





Um tradutor é muitas vezes um sujeito que fica inventando problemas onde não existe nenhum. Tem um pequeno detalhe que parece incontestável, já resolvido, ponto-pacífico, “taken for granted”.  E o tradutor põe o olho em cima, põe o dedo em cima, e passa duas horas matutando sobre aquele grãozinho de poeira.
Em literatura, que se absorve pelos olhos, qualquer grãozinho indesejável de poeira vira um argueiro em pleno olho. No caso do tradutor, uma noite de insônia e de medo do ridículo.


Esta é a sina dele, e também a do revisor (alô, colegas revisores, lembrei de vocês!).  Deveria ser também a do autor, mas nem todo autor – para o bem e para o mal – é cuidadoso assim.  Compreende-se.
O que o autor está despejando no papel é, para usar uma expressão melodramática, “o tumulto íntimo que arde em seu espírito”.  Já o tradutor e o revisor estão lidando com o tumulto íntimo alheio. Não podem correr o risco de tratar levianamente algo precioso que não é seu.
Traduzir é, de certo modo, escrever em português o que o autor original possivelmente escreveria se trabalhasse em nosso idioma.
É quase um processo de psicografia, de escrever em nome de outra pessoa, tentando preservar os modos de expressão, o estilo, os cacoetes, os pequenos hábitos e as pequenas manias verbais que todo escritor tem.




Ao mesmo tempo, o tradutor tem que saber que o que faz é provisório, é datado.  Ele não escreve somente com o que tem, mas com o que sua época tem a oferecer.  Daí que os grandes textos precisem ser retraduzidos de vez em quando.  Não para que tenhamos traduções “melhores”, “com menos erros”, “mais corretas”, mas para termos reinterpretações verbais de um objeto verbal, que é um livro.

Não existe “a tradução melhor”.  Mesmo a frase-símbolo do inglês rudimentar, “the book is on the table”, admite mais de uma tradução. O livro está na mesa.  O livro está sobre a mesa.  O livro está em cima da mesa.

E o tradutor não deve esquecer que um texto não é só sentido.  Um texto, principalmente quando é um texto literário, tem ritmo, sonoridade, cadência, uma “textura” feita de sons das vogais e das consoantes, feita também de imagens.  Por “imagens” me refiro ao modo como a extensão dos parágrafos e das linhas, vista de súbito quando viramos a página, nos adverte sobre o ritmo interno do texto que estamos a ponto de ler – p. ex., se são duas páginas de texto corrido, cerrado, concentrado, sem pausas, ou se é uma sucessão de linhas curtas de diálogo.
Tudo isso tem que ser traduzido também.

Geralmente não se consegue, mas, como diria Albert Camus, é preciso imaginar que Sísifo é um cara feliz.