quinta-feira, 25 de setembro de 2014

0003) O narrador invisível


 
Do meu prefácio à edição da Alfaguara:


Quando Robert Montgomery adaptou A Dama do Lago  para o cinema em 1947, usou o truque da câmera subjetiva, a câmera que fica no lugar do personagem. A câmera é Philip Marlowe, deslocando-se pelos corredores e pelas ruas, encarando as pessoas, que falam diretamente para ela. Marlowe, interpretado pelo próprio Montgomery, só aparece quando se vê num espelho.  Chandler torceu o nariz diante desse recurso: “É um velho clichê de Hollywood: vamos fazer da câmera um personagem. A todo instante tem alguém que o propõe durante um almoço.”  Isso deu ao filme uma certa qualidade mecânica, mas é possível que Montgomery tenha procurado captar uma impressão fugidia produzida pelos romances de Chandler. Philip Marlowe é o narrador de todas as suas aventuras, mas é o personagem menos visível de todas elas.  É um homem sem mulher, sem amigos, sem família, que mora sozinho, que não tem uma turma de camaradas com quem costuma sair; fala pouco de si mesmo, sabe-se pouco sobre o seu passado, e as descrições de sua aparência física são colhidas em geral de maneira indireta – um policial fazendo anotações e comentando em voz alta, por exemplo. 




(Robert Mitchum como Philip Marlowe)
  

Marlowe foi interpretado no cinema por Humphrey Bogart (elogiado por Chandler), Robert Montgomery, Robert Mitchum, James Garner, Elliot Gould e outros.  Consta que Cary Grant seria a primeira escolha para o papel, se ele tivesse influência a esse ponto. Marlowe é uma voz narrativa com poucos momentos de revelação pessoal.  São muitos os momentos de introspecção em que, sozinho, ele conversa com o leitor e faz reflexões sobre a cidade, sobre as pessoas, sobre a vida em geral.  Revelações sobre si mesmo são raríssimas. É, como naquele filme, uma consciência através da qual vemos o mundo, uma voz que dialoga, um rosto visto de passagem; sabemos o que Philip Marlowe acha da vida, o que pensa dos seus clientes ou das pessoas que interroga, e chegamos até a saber em muitos momentos o que pensa de si mesmo; mas não sabemos quem é.

Saber quem é um personagem é mais uma fantasia de leitor do que uma ambição do crítico, mas alguns personagens são visibilíssimos.  Sherlock Holmes, com todas as suas tintas de melodrama e de thriller, é um personagem de quem só não acompanhamos o raciocínio, mas parece uma pessoa.  Philip Marlowe, comparado a ele, é translúcido.  É uma voz que conta uma história mas cuja origem não se deixa ver.


 
Essa voz que conta os romances de Marlowe é a mesma que inspirou o que se diz ter sido uma das grandes narrações em voice over do filme noir norte-americano, a de Double Indemnity (“Pacto de Sangue”), feita pelo personagem de Fred MacMurray, que na sequência inicial do filme chega baleado e sangrando, entra no escritório, liga o gravador e começa a contar o que lhe aconteceu.   

A mesma voz de Blade Runner, que nem Harrison Ford queria fazer nem Riddley Scott estava querendo autorizar, mas que os produtores exigiram, talvez pensando nos cofres, talvez querendo realizar alguma fantasia de leitor endinheirado.  Queriam ouvir essa voz cínica, desencantada, sardônica, que certamente ouviram num passado remoto.  Isso deu algo de Marlowe a Rick Deckard: a cena em que o andróide lhe quebra os dedos é totalmente Chandler.


A voz acabou desembarcando em Neuromancer, o romance de William Gibson que colocou em uso os conceitos, a ambientação e o tom do mundo cyberpunk.  Gibson não narra na primeira pessoa, mas seus romances iniciais tinham essa narração indireta em tom frio, distanciado, capaz de se envolver mas também de se afastar, a voz cínica, sardônica, desencantada, mas compassiva, e, quando é o caso, com uma honestidade que nem se orgulha muito de si própria.  Perto dos personagens de Gibson, Marlowe chega a ser um sentimental.


(capa de Yukimasa Okumura)

Mas Marlowe não comunica ao leitor seus sentimentos, ele prefere falar dos outros, e nem daqueles de quem mais fala ele revela tudo que está pensando.

Na “Doze anotações sobre a narrativa de misrério”, que aparece na edição da Alfaguara (são doze itens e mais dez adendos discutindo a técnica do gênero), Chandler discute o modo específico de usar essa opacidade do personagem diante do leitor. Aliás, não custa nada pedir desculpas ao leitor por falar de transparência e de opacidade ao tentar descrever um mesmo personagem.  Foi para situações mentais assim que se cunhou a expressão: “Se não for isso é o reverso disso.”

Diz ele:

10. O mesmo se aplica àquelas histórias onde o narrador, na primeira pessoa, é o criminoso. Pessoalmente, devo fazer uma ressalva a isto dizendo que, para mim, a narração na primeira pessoa sempre pode ser acusada de uma sutil desonestidade devido a sua sinceridade aparente e a possibilidade de omitir os raciocínios do detetive enquanto fornece um registro bastante claro das suas palavras e seus atos. O que dá vez a uma pergunta de maior alcance sobre o que é de fato honestidade nesse contexto: ela não é mais uma questão de grau, mais do que um valor absoluto? Acho que é, e que sempre será assim. Independentemente da transparência da narrativa na primeira pessoa, sempre chega um momento em que o detetive já formou suas idéias e no entanto ele não as comunica ao leitor.  Ele guarda alguns pensamentos para expô-los apenas na hora do desenlace, ou da explicação. Ele narra os fatos, mas não a reação a esses fatos na sua mente. Será esta uma convenção aceitável de logro do leitor? Deve ser, porque sem ela o detetive que narra a história não poderia resolver o enigma antes da cena final. Muito raramente há uma obra como The Big Sleep, que não oculta quase nada; o desenlace é uma ação a que o leitor chega juntamente com o detetive. A teorização do que aconteceu segue-se imediatamente.

Marlowe vive despistando os próprios pensamentos, e não parece capaz de gostar muito de alguma coisa ou de alguma pessoa.  De vez em quando tem uns acessos de fúria verbal, como no catálogo de tipos de louras que faz em O Longo Adeus ou em algumas tiradas de oratória contra a polícia.  O catálogo das louras sugere que Marlowe não era mais machista do que qualquer contemporâneo ou vizinho seu, mas esse “bife” recitado pelo personagem é mais coisa do autor do que coisa dele; nesse momento, ele é o boneco-de-ventríloquo do autor, o Chandler das “routines”, das tiradas intermináveis de paródias em voz alta que só não podiam ser chamadas de stand-up comedy porque o escritor as proferia à cabeceira de uma mesa de restaurante cheia de admiradores, fossem roteiristas ociosos de um estúdio ou londrinos endinheirados recebendo um beletrista ilustre.



(Chandler com amigos)

Quando Marlowe faz algumas dessas cenas nada revela de si.  Ele é simplesmente o cara que diz o que o autor está pensando no momento em que escreve.  E mais uma vez Philip Marlowe se esfuma diante dos nossos olhos: o vulto que avistamos era o vulto do autor.  Mas ficamos satisfeitos quando o autor irrompe dessa forma, porque o autor era muito mais lúbrico e muito mais romântico do que seu intangível narrador.  No fim, ficamos sem ambos.  O personagem é um espaço vazio por onde o autor passou e desapareceu.


("Self" by Michael Morgenstern)


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