quarta-feira, 28 de setembro de 2016

0018) As Detecções da Totalidade






Foi lançado recentemente o livro Raymond Chandler: The Detections of Totality (Verso, 2016, 96 páginas) de Fredric Jameson, um ensaísta e professor cujos estudos literários, que eu saiba, nunca tinham passado pela obra de Chandler ou sequer pelo romance policial.

O livro foi comentado por Angela Woodward (aqui: https://lareviewofbooks.org/article/like-glimpses-window-fredric-jameson-raymond-chandler/#!) na L. A. Review of Books.

A resenha é interessante e o livro parece ajudar a passar mais algumas camadas de imagens por cima das que a gente já tem sobre a obra de Chandler. É como se a gente tivesse que pintar um mural gigantesco, do tamanho daqueles de Portinari ou de Siqueiros, com dezenas de cenas, centenas de figuras, e o nome disso é “a Califórnia de Chandler”. Cada nova leitura é uma mão de tinta.

A atenção ao clima, ao detalhe significativo, aos comportamentos silenciosamente consensuais, é algo que Chandler utiliza muito, ora com a acuidade de um poeta, ora com a escrupulosidade de um contabilista.

Woodward diz:

Veja-se também o poder evocativo de certos objetos, onde “um carro é um ‘Ford’, um isqueiro é um ‘Ronson’, um chapéu é um ‘Stetson’.

É uma característica não só de Chandler ou do roman noir, mas de toda uma literatura de verniz pop de língua inglesa, nitidamente consciente das nuances da parafernália cultural que na Califórnia, de modo muito peculiar, é industrializada e vendida, mitologizada em seguida e vendida de novo.

É todo um viés particularizador, numa cultura de consumo estimulado e lazer mediado. Onde tudo vira substantivo comum, uma lâmina é uma gilete, uma cerveja é uma brahma. O reverso disso é que quando você diz: “Ele acendeu o cigarro com um Ronson que tirou do bolso de dentro do casaco”, é diferente de “Ele acendeu o cigarro com um isqueiro que tirou do bolso de dentro do casaco”.




Essas referências às vezes se tornam datadas. Você está tentando capturar um momento-presente qualquer e descobre, cinco anos depois, quando consegue publicar o livro, que as gírias, os modismos e as oscilações da bolsa dos valores políticos, mudaram totalmente.

OK, tudo perdeu a validade, mas se a qualidade literária do texto mantiver o livro à tona por algumas décadas, tudo aquilo que já se foi começa a ser banhado por aquela luz dourada da nostalgia, um sol que nasce pra todos os que envelhecem bem.

Alguns manejam isso que eu chamo de “nomes de marcas” melhor que outros. Quando o Neuromancer (1984) de William Gibson foi comparado ao romance policial hardboiled, geralmente as pessoas davam como exemplo disto o uso da narração em off (que Chandler afirmava ter inventado para resolver problemas narrativos e de estrutura em seu primeiro roteiro, Double Indemnity, com Billy Wilder).

Falam também no personagem calejado e cético, e na disponibilidade desse herói (o detetive particular, o cyber cowboy) para brigar, apanhar, ser preso, ser humilhado, escapar por pouco da morte, tudo para cumprir uma tarefa que lhe foi imposta por pessoas ricas e aleatórias que ele não consegue entender completamente.

Mesmo em suas trilogias recentes, que têm pouco de cyberpunk, nomes de marcas são um aspecto de peso no estilo de Gibson, que é ao seu modo um conceituador do pop como Andy Warhol. Zero History (2010) deve ser o primeiro livro de ficção científica cujo motivo central é a fabricação de jeans (conhecido como “Gabriel Hounds”).

É um aspecto chandleriano do universo cyberpunk, onde o autor tem o mesmo prazer em inventar marcas fictícias e em desenterrar marcas obscuras.


("Neuromancer", by byouin)

Dentro da FC, no entanto, é a mesma linha pop de autores como John Brunner, como Harlan Ellison, como Alfred Bester, como vários outros da new wave dos anos 1960 em diante. Os autores que Gibson admite terem sido os seus preferidos: Bester, J. G. Ballard.

Nomes de marcas são nomes genéricos, mas quando um cara diz “o meu Ford” o genérico se transmuda no pessoal, no afetivo, no que tem vida própria, carga afetiva própria. Sim, podia ser um Ford ou um Chevrolet, e eu quis um Ford. Isso é meu carro, meu violão, meu computador, meu casaco, meu isqueiro, são partes de mim.  

E nem todo mundo é igual. Do chapéu Stetson eu só sei vagamente o formato (preto, redondo, achatado, com aba dura, acho eu). Mas meu pai já teve isqueiro Ronson, e quando estou traduzindo uma frase e ele aparece, é um fragmento do Tempo pelo qual eu boto a mão no fogo, no fogo da memória, para aquecê-la um pouco.


Os Notebooks de Chandler mostram esse lado contabilista dele, de recortar colunas de jornal ou de revista, de fazer listas, de preparar glossários específicos, fazer um baú de descrições, roupas, ambientes, wisecracks, a serem transportados para a página quando necessário.

Gírias de batedores de carteira, regras e glossários de jogo de dados, como ler a data de fabricação de um fita de máquina de escrever; e símiles, e “chandlerismos”. Tudo anotado.

Talvez seja injusto usar o termo “contabilista” com uma conotação de atividade meramente burocrática, desinteressante. Fazer listas e catálogos é uma atividade cada vez mais associada à escritura de romances, ou de trilogias de romances,como vai acabar sendo dentro de algum tempo a unidade básica do gênero. De J. R. R. Tolkien a George R. R. Martin vem ganhando espaço na fantasia a catalografia dramatúrgica, que pressupõe em cada nome de rei ou de guerreiro uma porta para mil histórias e dez mil personagens.

O romance urbano de meados do século passado reflete bem isto na Califórnia de Chandler, um lugar onde o culto às marcas chega perto de se tornar uma religião a mais.


(Sunset Strip / "101 Things To Do in L. A.")