domingo, 17 de janeiro de 2016

0016) "Adeus, minha querida"





Muito se fala no espírito de cavaleiro andante de Philip Marlowe, em parte devido às ironias arturianas que Raymond Chandler usa para tornar mais vívido o ambiente, como nos parágrafos iniciais de O Sono Eterno, onde ele descreve um vitral com um cavaleiro tentando salvar uma donzela em perigo. 

No famoso trecho final do seu ensaio “A Simples Arte do Crime”, Chandler diz que seu detetive deve ser alguém “who is neither tarnished nor afraid”. É o cavaleiro sans peur et sans reproche dos velhos romances cavalarianos. 

Philip Marlowe, contudo, é mais quixotesco do que arturiano. Apanha tanto quanto Dom Quixote, e tem igualmente o hábito de forçar-se a ver uma Dulcinéia na pele de qualquer Lucrécia Bórgia que cruza o seu caminho.

 O ensaio “A Simples Arte do Crime” é um dos complementos que selecionei para a edição (em breve nas livrarias e na web) de Adeus, minha querida (Farewell, my lovely).  Será o quarto romance de Chandler traduzido e organizado por mim para a Objetiva/Alfaguara, depois de A Dama do Lago, O Longo Adeus e O Sono Eterno.




Outro complemento do livro são mais uma vez algumas cartas de Chandler, que são inimitáveis, e, em alguns sentidos, superiores aos romances. 

Chandler reduz a pó O Caso dos dez negrinhos de Agatha Christie, numa carta para seu colega da Black Mask, George Harmon Coxe. 

A Frederick Lewis Allen, da Harper’s Magazine, ele se queixa dos elogios meio erráticos que vem recebendo, inclusive de W. H. Auden, e comenta o quanto é difícil escrever com naturalidade quando se sente o peso dessas expectativas. Ele diz:

Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance sobre Marlowe, divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me aparece esse tal de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito de um ambiente criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e dizendo a mim mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de um ambiente criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal? Não, somente a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco exagerado, não porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou realista o bastante para conhecer as regras do jogo. 

Em outra carta, Chandler se queixa da mola desenhada pelo ilustrador numa das capas mais famosas das edições de bolso do romance:



Há uma longa carta para seu velho amigo e editor britânico, Hamish Hamilton, onde o escritor conta detalhadamente os problemas de sua vida doméstica, com a doença de sua esposa Cissy se agravando a cada ano. E uma sabatina feita por Alex Barris, à qual ele responde com inusitada deferência, falando fatos biográficos, gostos, manias, opiniões.

Adeus, minha querida, era tido em alta conta pelo autor (numa das cartas aqui transcritas ele diz: “Acredito que Adeus, minha querida será considerado o meu melhor livro.”  É um dos seus enredos mais bem articulados, e parte de uma estrutura que Chandler voltaria a usar em O longo adeus: duas investigações paralelas em que Philip Marlowe se envolve, e que depois revelam pertencer a uma única trama. Os personagens são vívidos, a narrativa principal tem algumas transversais sem saída (histórias que se cruzam com a principal, sem ter a ver com ela) que ajudam a desnortear o leitor, sem deslealdade.

O diálogo, um dos maiores fatores do sucesso inicial de O sono eterno, voltou neste segundo romance de Chandler com toda a sua naturalidade e malícia. Marlowe está à procura de informações, aborda o porteiro de um prédio e a certa altura diz:

“Mostre as cartas”, disse eu. “Posso ler pra você um capítulo da Bíblia ou lhe pagar um drinque. Você quem diz.” “Irmão, eu acho que prefiro ler a Bíblia quando estou no aconchego do meu lar.”

Um sujeito esnobe, metido a artístico, recebe Marlowe em sua casa. O detetive se detém na sala para olhar uma escultura modernosa, e:

“Uma peça interessante”, disse ele, negligentemente. “Eu a obtive há poucos dias. É o Espírito da Aurora, de Asta Dial.”
“Pensei que fosse o Duas Verrugas numa Poupança, de Klopstein”, disse eu.

Bay City (a cidade imaginária, inspirada em Santa Monica) aparece em vários livros como um centro de corrupção, e Marlowe se explica:

“Tudo bem, é uma cidade boa. Tanto quanto Chicago. Você pode viver nela um tempão e não ver nenhuma metralhadora. Claro, é uma cidade legal. Provavelmente não é mais corrupta do que Los Angeles. Mas você só pode comprar um pedaço de uma cidade realmente grande. Uma cidade do tamanho dessa aqui pode ser comprada inteira, com a embalagem original e embrulhada em papel de presente. Essa é a diferença. É isso que me faz querer cair fora.”




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