quinta-feira, 30 de outubro de 2014

0009) A memória do leitor - 2

 
A história de detetive clássica (ao estilo de Conan Doyle, Agatha Christie, Ellery Queen, Dorothy Sayers, etc.) se baseia em tramas criminais minuciosamente arquitetadas que resultam num crime aparentemente impossível, ou absurdo, ou sobrenatural.  Passado o choque inicial de incredulidade, cabe ao detetive sair checando cada pista e cada depoimento e no final reconstituir a história, mostrando o que realmente aconteceu e dando uma explicação cabal para cada detalhe polêmico ou ininteligível.



 
Nem sempre é assim, claro.  Raymond Chandler, em suas “Doze Anotações sobre a Narrativa de Mistério” (incluídas na minha tradução para a Alfaguara de A Dama do Lago) faz severas críticas aos mistérios clássicos.  Sobre um livro famoso (e um dos meus favoritos), Assassinato no Expresso do Oriente (1934) de Agatha Christie, ele afirma, com razão, que “...toda a preparação do crime requer uma combinação tão caprichosa de circunstâncias que jamais poderia parecer um fato real.”

A crítica é muito justa. Isto me faz gostar menos do livro?  De jeito nenhum.  O leitor do policial clássico sabe que o realismo daquelas histórias é meramente de verniz, de superfície, e que estruturalmente são narrativas com um altíssimo grau de improbabilidade. Trata-se de um problema de lógica, e os personagens estão ali como atores interpretando papéis numa peça.

Nessas mesmas “Doze Anotações...” Chandler faz reparos justos a outras narrativas clássicas, como “A faixa malhada” de Doyle e “A carta roubada” de Edgar Allan Poe (sempre em nome da plausibilidade). Há outra menção, no entanto, que produziu uma sincronicidade com algumas das minhas memórias pessoais. Chandler afirma a certa altura:

Dado que há leitores com diferentes formas de inteligência, alguns serão capazes de solucionar um crime muito bem disfarçado, e outros se deixarão enganar pelos mais transparentes enredos. (Será que “A liga dos cabeças vermelhas” poderia iludir um leitor moderno?)
Num post anterior (“A memória do leitor – 1”) reproduzi a capa do Mistério de Magazine de Ellery Queen de setembro de 1962 (vai aqui embaixo, de novo), onde li o meu primeiro conto de Chandler, “O último caso de Philip Marlowe” (“The Pencil”). 


 
Na mesma revista, como pode ser visto na capa, foi publicado um texto de Thomas L. Stix intitulado “Os 7 erros na Liga dos Cabeças Vermelhas”, que é uma breve e impiedosa desconstrução dessa aventura famosa de Sherlock Holmes.

Se o leitor não conhece esse conto, não será muito difícil encontrá-lo; faz parte da coletânea As Aventuras de Sherlock Holmes, que tem várias edições brasileiras, sendo a melhor a edição da Zahar (2010), comentada por Leslie S. Klinger.  É a história de Jabez Wilson, um homem de cabelos ruivos que consegue um emprego meio bizarro, onde sua missão é copiar à mão a Enciclopédia Britânica, mas o emprego só poderia ir para alguém com cabelo ruivo.  Sherlock Holmes consegue descobrir um plano diabólico de assalto por trás dessa atividade aparentemente sem nexo.

Nas imagens abaixo reproduzo o texto de Thomas L. Stix, apontando o que ele considera 7 erros graves de lógica, de continuidade e de bom senso, no conto de Doyle. (No final, Ellery Queen, na pele do editor Frederic Dannay, não resiste a apontar um oitavo erro ou inconsistência do conto.)  (Clique na imagem para ampliar)









Não sei se houve intenção do editor de publicar lado a lado o conto de Doyle, a desconstrução do conto de Doyle, e um conto de Chandler, que em seus manuscritos ele havia criticado. (As “Doze Anotações...” nunca foram publicadas em vida de Chandler; foram encontradas entre seus papéis, e sua primeira versão é datada de 1949.)
Tenho uma lembrança vívida, não de ter lido o conto de Chandler nessa revista, mas de estar indo no ônibus do bairro do Monte Santo, em Campina Grande, rumo ao apartamento de minha tia Adiza, ler esse texto de Stix sobre o conto de Doyle e me ficar maravilhado (eu tinha doze anos) pela possibilidade de alguém fazer um desmonte crítico de uma daquelas histórias que para mim eram mais definitivas e irretocáveis do que as Escrituras.



(ilustração de Sidney Paget para "The Red-Headed League")



Jorge Luís Borges disse que o romance policial criou um novo tipo de leitor, o leitor desconfiado, o que lê não apenas para fundir seu espírito ao espírito do autor que conta a história, mas também para desconfiar dele, suspeitar dele, saber que o autor de um romance policial é um cara que está jogando um jogo e não merece muita fé.  Eu diria que a leitura desse texto nessa revista me transformou de certo modo num crítico, porque pela primeira vez alguém pegou um dos meus monstros sagrados (Doyle) e mostrou que ele também errava; tal como “também cochilava o bom Homero”. 



segunda-feira, 20 de outubro de 2014

0008) A memória do leitor - 1




Um sebo de livros é um dos lugares preferidos dos andróides quando querem alugar memórias alheias.


Existem livros que um dia terão que ser relidos na mesma edição (já que geralmente não é possível ser o mesmo exemplar) que leu pela primeira vez.  Há livros que eu já tenho na língua original e numa boa tradução, mas não resisto quando encontro a versão (às vezes mais rudimentar e descuidada) que li pela primeira vez: a mesma capa, o mesmo papel, a mesma mancha gráfica, a mesma história com as mesmas pessoas.

Em setembro de 1962, quando eu morava na minha cidade natal de Campina Grande, eu tinha recém-conhecido o Mistério Magazine de Ellery Queen (Editora do Globo, Porto Alegre), a melhor de todas as revistas de contos policiais que colecionei. 

Eu, nos meus doze anos recém-completados, lia aquilo tudo sem conhecer muitos autores além dos monstros sagrados como Doyle, Christie, Queen.  E no índice nesse número de setembro vi listado o conto “O Último Caso de Philip Marlowe”, escrito por Raymond Chandler, nome que eu nunca vira mais gordo.



 
Provavelmente achei uma coisa ousada esse conceito de um último caso de um detetive, quando é justamente o contrário que o gênero requer – a continuação infinita, ou pelo menos inalcançável.  Que detetive fraco era esse, que o autor condenava com uma penada tão radical?  Anos depois, quando Agatha Christie fez o que fez com Poirot, isso me voltou à mente.

Bem, eu tinha doze anos, Poirot era tão real quanto João Goulart.  Nem pensei nisso tudo: fui olhar lá dentro.  Essas curtas apresentações dos contos do MMEQ eram geralmente escritas por Frederic Dannay, a metade ploteira de Ellery Queen (Manfred B. Lee era a metade estilosa), e responsável quase sozinho pela seleção e apresentação dos contos da revista, que era empreendimento dos dois mas tocado pessoalmente por ele.  No texto de apresentação do conto, disse Dannay: “Esta não foi apenas a última história de Raymond Chandler sobre Philip Marlowe, como também a última que escreveu antes de morrer.”






O conto hoje é publicado com o título “The Pencil”, e na revista da Editora Globo não se menciona o nome do tradutor. (O MMEQ raramente mencionava o tradutor. O Magazine de Ficção Científica, da mesma editora, entre 1970-1971, sob a direção de Jeronymo Monteiro, já mencionava o tradutor de cada conto).

É interessante você olhar para um conto que você sabe que já leu mas é como se tivesse havido uma lavagem cerebral da KGB, você não tem a menor impressão de já ter visto aquilo. Tenho livros que li trinta anos atrás, e quando pego hoje reconheço meu jeito de sublinhar.  Li aquilo, mas não lembro nada, é como se fosse outra pessoa.  Em alguns casos, se eu pegar e começar a reler de fato, a sério, começa a voltar tudo.  Às vezes lembro onde eu estava, quando li aquela página.

Este número do EQMM, aliás, não é mesmo exemplar o que eu li quando garoto.  Esse já se desfez em química há muito tempo.  Mas a Praça Tiradentes está aí para isso mesmo, ou a Rua da Roda, ou o Maleta.  Esse exemplar prístino me basta, como o rouxinol bastava a Keats.  Não lembro nada do conto de Chandler.  Não lembro como acaba o conto de Cornell Woolrich, um dos meus autores favoritos, anunciado aí na capa, embora tenha reconhecido o início da história quando reli alguns parágrafos.

Tem histórias de nomes conhecidos como Nicholas Blake (não que eu os conhecesse naquele tempo), Norman Daniels.  Mas tem alguns contos que eu lembro como se fosse hoje.

Memória de leitor é uma coisa engraçada.

Na época eu tinha o costume de, junto ao número da página, escrever minha nota, que geralmente ia de 7 a 10.  Eu devo ter dado 10 ao conto “Desta Urtiga”, de Robert Twohy, que até hoje não sei quem seja, e acho que nos primórdios do Yahoo fui atrás dele sem sucesso.




Vou contá-lo aqui, sem ter relido.  Basicamente (como se diz em inglês), tocam a campainha na casa de um cara e quando ele abre é a polícia.  A vizinha fofoqueira ouviu ruídos de briga, grito feminino, silêncio suspeito, telefonou alertando. Ele ri, diz que teve uma altercação com a esposa, e ela saiu durante a noite, aborrecida, com uma mala feita às pressas, e ele não sabe para onde ela pode ter ido.

Os policiais não têm um mandado (é uma espécie de varinha mágica das narrativas fantásticas norte-americanas, uma coisa bem cordel, porque sem ele um policial não entra em lugar nenhum  e com ele entra em qualquer lugar e pinta e borda conforme lhe aprouver).  Mas ele pede que entrem, façam o favor, a casa está à disposição, percorrem os aposentos. Quando ele começa a se despedir, o policial pergunta pelo quintal.  Ele diz que não tem nada, é um quintal vazio. Eles insistem. Vão até lá.  Tem uma casinha. Ele ri, nervoso: “Oh, oh, não é que esqueci o velho depósito de ferramentas?!  Há séculos que não entro ali.”

E lá vão os policiais, desta vez os dois vão na frente e o marido os acompanha arrastando os pés.  Abrem, olham, veem o chão de terra todo revolvido, e depois tapado.  Perguntam.  Ele diz a primeira coisa que lhe vem na cabeça, ou talvez não, ele já sabia o que ia dizer.  Foi o cachorro, ou o coelho da casa, que morreu ontem, e teve que ser enterrado.  Os policiais se entreolham.  Quem enterrou o bicho?  Ora, fui eu, claro.  O senhor não disse que não entrava aqui há séculos?  Modo de dizer, tenente.  Os policiais se entreolham.

Um leva ele lá para fora com um cerca-lourenço qualquer e o outro começa a cavar. Acha o que? Os ossos do coelho.  Os dois ficam enfarruscados, o marido aliviado por ver que tudo se confirma, despedem-se à porta, faróis vermelhos somem na longa rua. Ele volta para o quintal, assobia, e ouve a voz da vizinha fofoqueira, que Faye Dunaway perde, dizer que está tudo pronto.  Puxam-empurram de volta por cima do muro o corpo envolto no rude sudário.  Ela pula, os dois arrastam a carga até o buraco que acaba de ser reaberto, cavam mais um pouco, põem ali a carga, e se abraçam com um beijo de filme noir.  Um dos dois recita:

-- “Desta urtiga, que é o perigo...”

E o outro completa:

-- “Colhemos esta flor, a segurança.”

Termina o conto.



Foi este o conto a que eu devo ter dado nota dez, porque mesmo que eu o tenha relido depois não o li mais que meia dúzia de vezes na vida inteira, e certamente não nos últimos dez anos.  Se alguém achar essa revista e comparar com minha história, vai ver um bom experimento de memória literária. Que poderia ser um ramo de estudos independente: os modos como recordamos (sempre fragmentadamente, metamorfoseadamente) as histórias que lemos.

Esse conto nada tem a ver com Chandler.  É outra fase da literatura popular, que atingiu ao mesmo tempo a literatura policial e a ficção científica, e certamente outros gêneros.  Tecnicamente, é a passagem dos pulp magazines, que eram grandes, rústicos, e tinham literatura equivalente, pelas revistas digest, que é aquele formato que conhecemos pela revista Seleções.  De 1950, a FC e a literatura policial começaram a ser praticadas nesse novo formato, que visava outro público. 

“Desta Urtiga” é um dos subgêneros que proliferaram, e que eu descreveria como o gênero de O Que Fazer Com O Cadáver.  Há milhares de contos sem outro propósito senão inventar uma variante de solução para este problema, uma variante que pelo menos seja curiosa o bastante para convencer um editor a publicá-la.




Matar o cônjuge, na literatura policial, chega a ser uma figura de linguagem, algo tão frequente que estamos sempre prontos para nos deparar com seu retorno.  Faz parte da maneira de ser.  Maridos matavam esposas, esposas matavam maridos, com um remédio “batizado” ou um dardo por controle remoto, mas ninguém via isso como um fato sangrento, era uma mera função proppiana, algo que tinha de acontecer para que a história existisse.

Nada me era mais estranho (e acho que continua assim até hoje) do que a idéia de matar planejadamente outra pessoa.  Mas o conto policial me ensinou a poder pensar nisso como um mero elemento de uma história cujo objetivo é outro, e o assassinato da mulher está ali como podia ser qualquer outra coisa. 
Na pulp fiction de Black Mask e outras havia espaço para homens batendo em mulheres (se bem que no geral todos preferissem bater uns nos outros), mas não havia esse espírito rarefeito capaz de ver num assassinato um mero movimento num problema de xadrez.  Era disso que Chandler não gostava.  Ele gostava do realismo, de pessoas movidas por coisas profundas, que tornava quase impossível elas procederem de outra forma.  Ele não gostava da frieza, queria que a vida pelo menos nos livros fosse algo menos cerebral do que o xadrez.



sexta-feira, 10 de outubro de 2014

0007) As biografias de Chandler - 1



Acaba de ser traduzida no Brasil a biografia Raymond Chandler – Uma Vida (São Paulo: Benvirá, 2014), de Tom Williams.  Ao que eu saiba, é a primeira a ser traduzida entre nós, pois não tenho notícia de traduções brasileiras das duas principais: The Life of Raymond Chandler de Frank MacShane (1976) e Raymond Chandler – a biography de Tom Hiney (1997).



Estou lendo a biografia escrita por Williams. Me parece correta no levantamento das informações e nos julgamentos, inclusive os literários. Chandler tem uma vida bem documentada, viveu cerca de dois terços de sua vida na Califórnia, de modo que rastrear seus fatos é apenas trabalhoso. Além disso, deixou uma gigantesca correspondência, o que ajuda a reconstituir suas idéias, emoções e expectativas em diferentes momentos da vida.

Estou ainda na página 200 do livro, ou seja, durante a II Guerra Mundial, quando Chandler está escrevendo A Dama do Lago. Algumas coisas que me chamaram a atenção neste biografia, em relação às outras. Desta vez me ficou mais clara a relação familiar de Chandler, na infância, com a opressiva família irlandesa de sua mãe. A mãe era mal-vista porque separou-se do marido, o que naquele tempo era uma mancha na honra familiar.  Williams dá mais atenção a este lado; já a biografia de Hiney é superior em sua descrição do colégio de Dulwich, onde ele estudou, e que teve papel crucial na sua formação.



(Chandler estudante)


O livro de Williams tem muitas qualidades, mas tem um cacoete-de-biógrafo que me incomoda.  Quando escrevemos sobre a vida de outra pessoa num passado distante temos que fazer suposições o tempo inteiro, e nenhum biógrafo (nenhum) resiste a fazer inferências, suposições, etc. e formulá-las como se fossem uma verdade tranquila e aceita.

“Na véspera de Waterloo, Napoleão estava confiante mas inquieto, pois a vitória dependia de muitos fatores.  Ele demorou a conciliar o sono, mas sabia que precisava recuperar as energias.”

Isso ocorre nas biografias romanceadas, aquela que tentam contar uma história real como se fosse algo acontecendo diante dos nossos olhos, com direito inclusive a dizer o que Fulano estava pensando duzentos anos atrás.


É um recurso legítimo?  Talvez sim, até porque se quisermos desmontá-lo radicalmente (questionar o direito ou a capacidade do biógrafo de imaginar algo que não presenciou ou não ficou documentado) o gênero se acaba.  Todo biógrafo romanceia.

Tom Williams tenta evitar esse excesso de liberdade, mas usa para isto o salvo-conduto da abordagem condicional:

(Sobre o casamento de Chandler e Cissy): A cerimônia foi realizada em 6 de fevereiro de 1924 por Carl S. Paton, um ministro da região, e teve como testemunha a irmã de Cissy, Lavinia. Deve ter sido um evento pequeno, apenas para alguns colegas de trabalho, amigos que Ray fez na guerra e possivelmente Alma Lloyd (pag. 107).


A partida de Ray da Inglaterra havia deixado Florence [sua mãe] por conta própria. Separada de seu filho e isolada por sua família (...) ela deve ter se sentido solitária, até mesmo abandonada (pag. 73).
É frequente no livro o uso dessas expressões tipo “deve ter sido”, “provavelmente pensou que”, “certamente decidiu que”, etc.  Williams parece ter um cuidado permanente em deixar claros os limites de suas suposições, mas não resiste a fazê-las. Às vezes, o resultado é que biografias assim passam para o leitor (para mim, pelo menos) a imagem de um biógrafo que não tem certeza do que afirma. Isto, contudo, só ocorre porque ele deixa claro que não passam de suposições. Quando o biógrafo romanceia sem remorsos, a gente nem percebe.









segunda-feira, 6 de outubro de 2014

0006) O poder e o dinheiro



Existe uma semelhança espantosa entre a Califórnia de 1940, onde acontecem as aventuras de Philip Marlowe, e o Brasil de 2014.  Política, poder, finanças, corrupção, polícia, drogas, crime, imprensa, mídia ambiente.  A cada capítulo a gente encontra um texto, escrito há mais de 60 anos e em outro país, que parece uma continuação das matérias que acabamos de ler no jornal de hoje.

No capítulo 32 de O Longo Adeus, Philip Marlowe faz uma visita ao milionário Harlan Potter, uma espécie de “Cidadão Kane” local, dono de um império financeiro e de cadeias de jornais. Potter é o ex-sogro de Terry Lennox, o amigo cuja provável morte Marlowe está tentando esclarecer.  O milionário chama o detetive para explicar-lhe que ele está se metendo demais onde não é chamado.
"Nós vivemos no que se chama uma democracia, governada pela maioria do povo.  É um ideal muito bonito, pena que não funciona.  As pessoas elegem, mas é o partido quem nomeia, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, precisam consumir muito dinheiro. Alguém tem que lhes dar esse dinheiro, e esse alguém, seja um indivíduo, um grupo financeiro, um sindicato profissional ou qualquer outra coisa, espera algum tipo de consideração em troca.  O que eu e outras pessoas do meu tipo esperamos é que nos deixem viver nossas vidas com decência e privacidade.  Sou proprietário de jornais, mas não gosto deles.  Considero cada um deles uma ameaça permanente ao pouco de privacidade que me resta.  Seu choro constante pedindo liberdade de imprensa significa que, com poucas e honrosas exceções, eles querem liberdade para faturar com escândalos, crimes, sexo, sensacionalismo, ódio, duplos-sentidos, e todos os usos financeiros e políticos da propaganda.  Um jornal é um negócio cujo objetivo é acumular lucros através da renda de publicidade.  Isto vai depender da sua circulação, e o senhor sabe de que fatores a circulação depende.”
Potter é um desses potentados sombrios e vampirescos que Chandler gostava de retratar.  Seus ricos raramente são joviais, extrovertidos, populistas.  O general Sternwood (O Sono Eterno), Mr. Grayle (Farewell, My Lovely), Potter, são todos homens soturnos, sem alegria, repletos de zonas de sombra.

Potter continua:
“Existe algo peculiar acerca do dinheiro,” continuou.  “Em grandes quantidades ele tende a ganhar uma espécie de vida própria, até mesmo uma auto-consciência.  O poder do dinheiro fica muito difícil de controlar.  O homem sempre foi um animal à venda.  O crescimento das populações, o custo enorme das guerras, a pressão incessante dos impostos e seus confiscos... todas essas coisas o tornam cada vez mais venal.  O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não pode se dar o luxo de ter ideais. Ele tem que comprar comida para a família.  Em nossa época temos visto um declínio acentuado tanto na moral pública quanto na privada.  Não se pode esperar qualidade de pessoas cuja vida vem sendo submetida à falta de qualidade.  Não se pode esperar qualidade numa produção em massa.  Ela seria indesejável, por fazer as coisas durarem mais tempo.  Assim, no lugar dela coloca-se estilo, que é uma burla comercial destinada a produzir obsolescência artificial.  A indústria de massas não poderia nos vender seus produtos no ano que vem senão fazendo com que o que foi comprado hoje esteja caduco daqui a um ano.  Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais reluzentes do mundo.  Mas nessa cozinha branca e adorável a dona-de-casa média da América não sabe preparar uma refeição que se possa comer, e o adorável banheiro reluzente serve apenas de receptáculo para desodorantes, laxantes, pílulas para dormir, e todos os produtos desse golpe de vigaristas que se chama indústria dos cosméticos.  Fazemos os mais sofisticados embrulhos do mundo, Sr. Marlowe.  O que vai dentro deles é, em sua maior parte, lixo.”
Qualquer semelhança com o Brasil não é coincidência, é mera continuidade.