segunda-feira, 20 de outubro de 2014

0008) A memória do leitor - 1




Um sebo de livros é um dos lugares preferidos dos andróides quando querem alugar memórias alheias.


Existem livros que um dia terão que ser relidos na mesma edição (já que geralmente não é possível ser o mesmo exemplar) que leu pela primeira vez.  Há livros que eu já tenho na língua original e numa boa tradução, mas não resisto quando encontro a versão (às vezes mais rudimentar e descuidada) que li pela primeira vez: a mesma capa, o mesmo papel, a mesma mancha gráfica, a mesma história com as mesmas pessoas.

Em setembro de 1962, quando eu morava na minha cidade natal de Campina Grande, eu tinha recém-conhecido o Mistério Magazine de Ellery Queen (Editora do Globo, Porto Alegre), a melhor de todas as revistas de contos policiais que colecionei. 

Eu, nos meus doze anos recém-completados, lia aquilo tudo sem conhecer muitos autores além dos monstros sagrados como Doyle, Christie, Queen.  E no índice nesse número de setembro vi listado o conto “O Último Caso de Philip Marlowe”, escrito por Raymond Chandler, nome que eu nunca vira mais gordo.



 
Provavelmente achei uma coisa ousada esse conceito de um último caso de um detetive, quando é justamente o contrário que o gênero requer – a continuação infinita, ou pelo menos inalcançável.  Que detetive fraco era esse, que o autor condenava com uma penada tão radical?  Anos depois, quando Agatha Christie fez o que fez com Poirot, isso me voltou à mente.

Bem, eu tinha doze anos, Poirot era tão real quanto João Goulart.  Nem pensei nisso tudo: fui olhar lá dentro.  Essas curtas apresentações dos contos do MMEQ eram geralmente escritas por Frederic Dannay, a metade ploteira de Ellery Queen (Manfred B. Lee era a metade estilosa), e responsável quase sozinho pela seleção e apresentação dos contos da revista, que era empreendimento dos dois mas tocado pessoalmente por ele.  No texto de apresentação do conto, disse Dannay: “Esta não foi apenas a última história de Raymond Chandler sobre Philip Marlowe, como também a última que escreveu antes de morrer.”






O conto hoje é publicado com o título “The Pencil”, e na revista da Editora Globo não se menciona o nome do tradutor. (O MMEQ raramente mencionava o tradutor. O Magazine de Ficção Científica, da mesma editora, entre 1970-1971, sob a direção de Jeronymo Monteiro, já mencionava o tradutor de cada conto).

É interessante você olhar para um conto que você sabe que já leu mas é como se tivesse havido uma lavagem cerebral da KGB, você não tem a menor impressão de já ter visto aquilo. Tenho livros que li trinta anos atrás, e quando pego hoje reconheço meu jeito de sublinhar.  Li aquilo, mas não lembro nada, é como se fosse outra pessoa.  Em alguns casos, se eu pegar e começar a reler de fato, a sério, começa a voltar tudo.  Às vezes lembro onde eu estava, quando li aquela página.

Este número do EQMM, aliás, não é mesmo exemplar o que eu li quando garoto.  Esse já se desfez em química há muito tempo.  Mas a Praça Tiradentes está aí para isso mesmo, ou a Rua da Roda, ou o Maleta.  Esse exemplar prístino me basta, como o rouxinol bastava a Keats.  Não lembro nada do conto de Chandler.  Não lembro como acaba o conto de Cornell Woolrich, um dos meus autores favoritos, anunciado aí na capa, embora tenha reconhecido o início da história quando reli alguns parágrafos.

Tem histórias de nomes conhecidos como Nicholas Blake (não que eu os conhecesse naquele tempo), Norman Daniels.  Mas tem alguns contos que eu lembro como se fosse hoje.

Memória de leitor é uma coisa engraçada.

Na época eu tinha o costume de, junto ao número da página, escrever minha nota, que geralmente ia de 7 a 10.  Eu devo ter dado 10 ao conto “Desta Urtiga”, de Robert Twohy, que até hoje não sei quem seja, e acho que nos primórdios do Yahoo fui atrás dele sem sucesso.




Vou contá-lo aqui, sem ter relido.  Basicamente (como se diz em inglês), tocam a campainha na casa de um cara e quando ele abre é a polícia.  A vizinha fofoqueira ouviu ruídos de briga, grito feminino, silêncio suspeito, telefonou alertando. Ele ri, diz que teve uma altercação com a esposa, e ela saiu durante a noite, aborrecida, com uma mala feita às pressas, e ele não sabe para onde ela pode ter ido.

Os policiais não têm um mandado (é uma espécie de varinha mágica das narrativas fantásticas norte-americanas, uma coisa bem cordel, porque sem ele um policial não entra em lugar nenhum  e com ele entra em qualquer lugar e pinta e borda conforme lhe aprouver).  Mas ele pede que entrem, façam o favor, a casa está à disposição, percorrem os aposentos. Quando ele começa a se despedir, o policial pergunta pelo quintal.  Ele diz que não tem nada, é um quintal vazio. Eles insistem. Vão até lá.  Tem uma casinha. Ele ri, nervoso: “Oh, oh, não é que esqueci o velho depósito de ferramentas?!  Há séculos que não entro ali.”

E lá vão os policiais, desta vez os dois vão na frente e o marido os acompanha arrastando os pés.  Abrem, olham, veem o chão de terra todo revolvido, e depois tapado.  Perguntam.  Ele diz a primeira coisa que lhe vem na cabeça, ou talvez não, ele já sabia o que ia dizer.  Foi o cachorro, ou o coelho da casa, que morreu ontem, e teve que ser enterrado.  Os policiais se entreolham.  Quem enterrou o bicho?  Ora, fui eu, claro.  O senhor não disse que não entrava aqui há séculos?  Modo de dizer, tenente.  Os policiais se entreolham.

Um leva ele lá para fora com um cerca-lourenço qualquer e o outro começa a cavar. Acha o que? Os ossos do coelho.  Os dois ficam enfarruscados, o marido aliviado por ver que tudo se confirma, despedem-se à porta, faróis vermelhos somem na longa rua. Ele volta para o quintal, assobia, e ouve a voz da vizinha fofoqueira, que Faye Dunaway perde, dizer que está tudo pronto.  Puxam-empurram de volta por cima do muro o corpo envolto no rude sudário.  Ela pula, os dois arrastam a carga até o buraco que acaba de ser reaberto, cavam mais um pouco, põem ali a carga, e se abraçam com um beijo de filme noir.  Um dos dois recita:

-- “Desta urtiga, que é o perigo...”

E o outro completa:

-- “Colhemos esta flor, a segurança.”

Termina o conto.



Foi este o conto a que eu devo ter dado nota dez, porque mesmo que eu o tenha relido depois não o li mais que meia dúzia de vezes na vida inteira, e certamente não nos últimos dez anos.  Se alguém achar essa revista e comparar com minha história, vai ver um bom experimento de memória literária. Que poderia ser um ramo de estudos independente: os modos como recordamos (sempre fragmentadamente, metamorfoseadamente) as histórias que lemos.

Esse conto nada tem a ver com Chandler.  É outra fase da literatura popular, que atingiu ao mesmo tempo a literatura policial e a ficção científica, e certamente outros gêneros.  Tecnicamente, é a passagem dos pulp magazines, que eram grandes, rústicos, e tinham literatura equivalente, pelas revistas digest, que é aquele formato que conhecemos pela revista Seleções.  De 1950, a FC e a literatura policial começaram a ser praticadas nesse novo formato, que visava outro público. 

“Desta Urtiga” é um dos subgêneros que proliferaram, e que eu descreveria como o gênero de O Que Fazer Com O Cadáver.  Há milhares de contos sem outro propósito senão inventar uma variante de solução para este problema, uma variante que pelo menos seja curiosa o bastante para convencer um editor a publicá-la.




Matar o cônjuge, na literatura policial, chega a ser uma figura de linguagem, algo tão frequente que estamos sempre prontos para nos deparar com seu retorno.  Faz parte da maneira de ser.  Maridos matavam esposas, esposas matavam maridos, com um remédio “batizado” ou um dardo por controle remoto, mas ninguém via isso como um fato sangrento, era uma mera função proppiana, algo que tinha de acontecer para que a história existisse.

Nada me era mais estranho (e acho que continua assim até hoje) do que a idéia de matar planejadamente outra pessoa.  Mas o conto policial me ensinou a poder pensar nisso como um mero elemento de uma história cujo objetivo é outro, e o assassinato da mulher está ali como podia ser qualquer outra coisa. 
Na pulp fiction de Black Mask e outras havia espaço para homens batendo em mulheres (se bem que no geral todos preferissem bater uns nos outros), mas não havia esse espírito rarefeito capaz de ver num assassinato um mero movimento num problema de xadrez.  Era disso que Chandler não gostava.  Ele gostava do realismo, de pessoas movidas por coisas profundas, que tornava quase impossível elas procederem de outra forma.  Ele não gostava da frieza, queria que a vida pelo menos nos livros fosse algo menos cerebral do que o xadrez.



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