sexta-feira, 10 de outubro de 2014

0007) As biografias de Chandler - 1



Acaba de ser traduzida no Brasil a biografia Raymond Chandler – Uma Vida (São Paulo: Benvirá, 2014), de Tom Williams.  Ao que eu saiba, é a primeira a ser traduzida entre nós, pois não tenho notícia de traduções brasileiras das duas principais: The Life of Raymond Chandler de Frank MacShane (1976) e Raymond Chandler – a biography de Tom Hiney (1997).



Estou lendo a biografia escrita por Williams. Me parece correta no levantamento das informações e nos julgamentos, inclusive os literários. Chandler tem uma vida bem documentada, viveu cerca de dois terços de sua vida na Califórnia, de modo que rastrear seus fatos é apenas trabalhoso. Além disso, deixou uma gigantesca correspondência, o que ajuda a reconstituir suas idéias, emoções e expectativas em diferentes momentos da vida.

Estou ainda na página 200 do livro, ou seja, durante a II Guerra Mundial, quando Chandler está escrevendo A Dama do Lago. Algumas coisas que me chamaram a atenção neste biografia, em relação às outras. Desta vez me ficou mais clara a relação familiar de Chandler, na infância, com a opressiva família irlandesa de sua mãe. A mãe era mal-vista porque separou-se do marido, o que naquele tempo era uma mancha na honra familiar.  Williams dá mais atenção a este lado; já a biografia de Hiney é superior em sua descrição do colégio de Dulwich, onde ele estudou, e que teve papel crucial na sua formação.



(Chandler estudante)


O livro de Williams tem muitas qualidades, mas tem um cacoete-de-biógrafo que me incomoda.  Quando escrevemos sobre a vida de outra pessoa num passado distante temos que fazer suposições o tempo inteiro, e nenhum biógrafo (nenhum) resiste a fazer inferências, suposições, etc. e formulá-las como se fossem uma verdade tranquila e aceita.

“Na véspera de Waterloo, Napoleão estava confiante mas inquieto, pois a vitória dependia de muitos fatores.  Ele demorou a conciliar o sono, mas sabia que precisava recuperar as energias.”

Isso ocorre nas biografias romanceadas, aquela que tentam contar uma história real como se fosse algo acontecendo diante dos nossos olhos, com direito inclusive a dizer o que Fulano estava pensando duzentos anos atrás.


É um recurso legítimo?  Talvez sim, até porque se quisermos desmontá-lo radicalmente (questionar o direito ou a capacidade do biógrafo de imaginar algo que não presenciou ou não ficou documentado) o gênero se acaba.  Todo biógrafo romanceia.

Tom Williams tenta evitar esse excesso de liberdade, mas usa para isto o salvo-conduto da abordagem condicional:

(Sobre o casamento de Chandler e Cissy): A cerimônia foi realizada em 6 de fevereiro de 1924 por Carl S. Paton, um ministro da região, e teve como testemunha a irmã de Cissy, Lavinia. Deve ter sido um evento pequeno, apenas para alguns colegas de trabalho, amigos que Ray fez na guerra e possivelmente Alma Lloyd (pag. 107).


A partida de Ray da Inglaterra havia deixado Florence [sua mãe] por conta própria. Separada de seu filho e isolada por sua família (...) ela deve ter se sentido solitária, até mesmo abandonada (pag. 73).
É frequente no livro o uso dessas expressões tipo “deve ter sido”, “provavelmente pensou que”, “certamente decidiu que”, etc.  Williams parece ter um cuidado permanente em deixar claros os limites de suas suposições, mas não resiste a fazê-las. Às vezes, o resultado é que biografias assim passam para o leitor (para mim, pelo menos) a imagem de um biógrafo que não tem certeza do que afirma. Isto, contudo, só ocorre porque ele deixa claro que não passam de suposições. Quando o biógrafo romanceia sem remorsos, a gente nem percebe.









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