quarta-feira, 10 de junho de 2015

0012) Chandler e a ficção científica



Quando um blogueiro diz que não vai mais atrasar postagens, isso tem o valor de uma resolução de Ano Novo sob o efeito de espumante ou de uma declaração de amor sem testemunhas.  Dito isto, vamos à luta. Atrasei o blog porque o Projeto Chandler foi para a prateleira por enquanto (a editora não está com pressa, há um livro sendo lançado agora e outro em preparo), e deu lugar ao Projeto Comando Sul, do qual já traduzi dois livros e estou na metade do terceiro.




A trilogia Comando Sul (Southern Reach) é uma série de ficção científica de Jeff VanderMeer, escritor, blogueiro, antologista e crítico, com uma obra longa, variada e bem escrita. Os três romances são Aniquilação (“Annihilation”, 2014), Autoridade (“”Authority”, 2014) e Aceitação (“Acceptance”, 2014).  O primeiro volume ganhou neste mês de junho, nos EUA, o Prêmio Nebula de Ficção Científica, que é considerado um prêmio mais exigente, por ser votado por escritores e pessoas do mercado profissional, enquanto o Prêmio Hugo é votado pelos fãs que comparecem a uma Convenção Mundial ou contribuem para ela.  Não li os romances concorrentes, mas em todo caso o livro de VanderMeer é muito bom, e pelo clima de estranheza, horror cósmico e revelações conceituais lembra os filmes de Andrei Tarkovsky, como Solaris (baseado num romance de Stanislaw Lem) e Stalker (baseado num romance dos irmãos Strugatski).



A trilogia Comando Sul está sendo publicada no Brasil pela Editora Intrínseca (Rio). Recomendo.




Voltando então ao nosso amigo Chandler. O que pensava ele da ficção científica? Nada muito bom, e não é de admirar. Parece que sua má vontade era para com os aspectos temáticos e os aspectos estilísticos da FC, por igual. Dá para ver isto no que ele escreveu em 1953 numa carta para seu agente literário H. N. Swanson:



Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:



Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.



Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?
 


Muito se comenta o aparecimento (e num contexto plausível!) da palavra “Google”, com essa mesma grafia, e inicial maiúscula, tal como usamos hoje. Muito antes da Internet os matemáticos já usavam esse termo para indicar uma grande quantidade bem específica, que é o número 1 seguido de cem zeros. Vi essa palavra pela primeira vez traduzida como “gugol”, no livro Matemática e Imaginação (Edward Kasner e James Newman, Zahar Editores, 1976, tradução de Jorge Fortes).  É um dos livros mais acessíveis e divertidos sobre problemas matemáticos complexos; Jorge Luís Borges, que o resenhou com imediata identificação, disse não duvidar de que viria a seria um dos livros que iria mais reler e encher de notas manuscritas (Discusión, 1955, recompilação ampliada).



Os autores comentam o gugol, o gugolplex (um 1 seguido por um gugol de zeros) e assim por diante.  No mesmo capítulo, eles analisam o valor matemático do Aleph, outro conceito caro a Borges. Chandler certamente o leu em algum livro ou artigo sobre curiosidades matemáticas.



A sátira de Chandler à FC de pulp fiction não é disparatada, pelo contrário, acerta de maneira bem visível em alguns cacoetes dessa FC.  Os substantivos inventados (no caso, em número excessivo) cujo sentido tem que ser deduzido do contexto; a ação em cortes secos, rápidos, decididos, de homem prático, sem divagações; e, quando menos se espera, a única frase sem complicações e a única que realmente produz no leitor o efeito pavloviano pretendido: A pressão era quase insuportável... Nesse instante a aventura volta, o suspense e a incerteza arrebatam consigo o leitor, que não sabe o que é um Bryll nem um cisícito transparente, mas sabe que quando a pressão está insuportável está na hora de abandonar o submarino, a espaçonave, a caldeira do navio, o escambau.



“Computador de pulso” é outro detalhe interessante, mas, mais uma vez, as revistas novaiorquinas de FC falavam nisso há décadas. O melodrama de aventuras volta a dar o tom com “eu tinha exatamente quatro segundos para...”



Falarei noutro dia sobre a visão de Chandler sobre a literatura fantástica em geral. Mas vale a pena lembrar que o trecho acima, muito citado entre os chandlerismos, foi glosado de forma brilhante por Barry Malzberg, que usou suas frases integralmente, só que “enxertadas” numa história mais longa, no conto “Playback” (1990), publicado na antologia Universe 1, editada por Robert Silverberg e Karen Haber (Spectra Special Editions, 1990). O título do conto certamente faz alusão ao fato de que quando Chandler rabiscou sua pequena paródia estava trabalhando no seu último romance, Playback, “aquele do qual ninguém gosta”.



(Barry Malzberg)



Barry Malzberg (nascido em 1939) é uma mistura curiosa de escritor mercenário de pulp fiction e contestador literário com rupturas de grande impacto. Ganhou vários prêmios, tem romances importantes como Beyond Apollo (1972) e outros. Não me lembro de ter lido nenhum comentário dele sobre Chandler, mas seu premiado livro de ensaios The Engines of the Night (1982) tem um comovente artigo sobre os últimos dias de Cornell Woolrich (“William Irish”), um dos autores de policial noir que Chandler admirava. E o próprio Malzberg publicou (sob o pseudônimo de Mike Barry) uma série de 14 thrillers policiais entre 1973 e 1975  sobre o “Lone Wolf”, um típico vingador que executa bandidos ao longo de uma vingança pessoal e vai espiralando cada vez mais no vórtice das chacinas.