quinta-feira, 19 de novembro de 2015

0015) Por que sentimos medo no cinema?





Li há pouco um comentário sobre o filme A Travessia (The Walk), de Robert Zemeckis, sobre Philippe Petit, aquele francês que estica uma corda-bamba entre dois arranha-céus e a atravessa, equilibrando-se. O comentário é da jornalista Maria do Rosário Caetano,  e toca num ponto interessante do cinema de suspense, o gênero em que Raymond Chandler mais trabalhou em seu período como roteirista de cinema.

Diz Rosário:

Eu que vou muito ao cinema, sofri muito com sucessivas apresentações aquele trailer. (...) Quase morri de pavor. Suei as mãos, tapei os olhos, um sofrimento. De que adianta a gente saber que o cara está vivíssimo, pois poucos anos atrás o entrevistamos no Brasil. Nada adianta, o pavor (a sensação de vertigem) é o mesmo!!!!

O cinema de suspense se deleita em produzir em nós esse tipo de efeito. Contra toda lógica, ficamos nervosos. Mesmo que pensemos: “Calma! Que besteira! É só um filme! São atores e efeitos especiais!  Se tivesse acontecido alguma coisa, a gente saberia!”. Mas não adianta.


Na minha tradução recente de A Dama do Lago (Alfaguara, 2014), incluí o texto Doze anotações sobre a narrativa de mistério, uma das melhores coisas já escritas sobre o romance policial.  (O texto foi encontrado entre os papéis de Chandler após sua morte; nunca foi publicado em vida.)  São doze comentários complementados por 13 adendos. O último desses adendos discute justamente o filme de suspense, ou de menace (“ameaça, perigo”), que era o termo usado por Chandler.  Diz ele:

(...) 
13. Como já foi sugerido acima, todas as ficções dependem do suspense, seja de que modo for. Mas o estudo da mecânica desse tipo extremo chamado menace, ameaça, perigo, revela a curiosa dualidade psicológica na mente do leitor ou de uma platéia mediante a qual, por um lado, é possível estar aterrorizado pelo que pode haver do outro lado da porta e ao mesmo tempo saber que a heroína ou a protagonista não vai ser morta, visto que é a heroína ou a protagonista. Se uma personagem interpretada por Claudette Colbert está passando um espantoso perigo, temos certeza absoluta de que Miss Colbert não vai se machucar pela simples razão de que é Miss Colbert.  Como é possível, então, que a mente da platéia tenha medo real da ameaça, sabendo destes fatos notórios? 

Entre as muitas respostas possíveis, eu proponho duas. Nossas reações ao som e às imagens visuais, ou a sua evocação por descrições verbais, independe da nossa razão. O elemento primitivo do medo nunca está distante da superfície dos nossos pensamentos; qualquer coisa que conseguir desencadeá-lo pode suplantar temporariamente a razão.  Daí que os filmes de menace concentram seu apelo sobre essa emoção tão antiga e tão irracional.  Poucos homens estão livres de sua influência. 

A outra resposta que sugiro é que em qualquer espécie de projeção, seja ela literária ou de outro tipo, a parte é maior do que o todo. A cena que está diante dos olhos domina o pensamento da audiência; o indivíduo normal não faz nenhuma tentativa de conciliar isto com outros aspectos da história.  Ele é arrastado pelo que acontece naquela cena. Quando você termina de ler o livro, ele pode, mas não necessariamente, ser focalizado como um todo e ser lembrado pelos seus méritos quando visto assim; mas, no momento da leitura, o capítulo é o fator dominante. A visão da imaginação emotiva é muito curta, mas também muito intensa.


Claudette Colbert, Maid of Salem, 1937

As pessoas que leem apenas os romances de Chandler acabam não tendo acesso a essas reflexões sobre a narrativa literária ou cinematográfica, coisa em que ele era mestre. Tinha algumas opiniões radicais, e não tinha papas na língua, mas a sua abordagem é sempre a de um leitor atento capaz de introspecção e de autoanálise. O leitor capaz de interromper uma leitura e pensar: “Por que gostei tanto desse trecho? O que há nessas palavras, no modo como foram escolhidas e arrumadas, que as fez produzir um impacto tão grande na minha emoção?”  Chandler parecia fazer isso o tempo todo.

Parece que Hitchcock se preocupava também com isso, porque um dos grandes choques que o filme Psicose (1960) produziu na platéia foi justamente pelo fato de ser um filme com uma grande estrela de Hollywood (Janet Leigh) e a estrela era assassinada no primeiro terço do filme. As platéias da época tiveram um momento de incredulidade, por certo. Não pela morte da personagem – mas pela “morte da atriz”.  Na época, Janet Leigh tinha uma enorme popularidade, e  por isso Hitchcock sugeriu ao roteirista Joseph Stefano que a estrela do filme fizesse o papel da moça que morre logo no começo. As cabeças pensantes do estúdio (dizia Hitchcock) teriam dito desde logo: “Bem, essa personagem é assassinada logo no primeiro rolo do filme, então vamos dar esse papel a qualquer uma, e dar a Janet Leigh o outro papel, o da irmã, que tem uma história de amor.”  Para ele, isso seria a solução mais idiota: “Toda a questão girava em torno justamente do fato da estrela ser morta – é isso que torna a cena tão inesperada.”  Por causa desse detalhe, no lançamento de Psicose foi recomendado aos cinemas que não deixassem ninguém entrar na sala depois de começada a projeção. “Eu não queria que alguém entrasse no meio do filme e ficasse se perguntando onde estaria Janet Leigh,” disse o diretor.


Janet Leigh, Psicose, 1960

Em 17 de janeiro de 2016:

Essa idéia parecia ser cara a Chandler, porque ele usou uma paráfrase perfeita do que dissera em suas “Doze anotações...”, numa fala atribuída a Sherry Ballou, o excêntrico mas arguto agente de atrizes hollywoodianas, em A Irmãzinha (cap. 18):

“O medo de hoje,” disse ele, “é sempre maior do que o medo de amanhã. É um fato básico das emoções dramáticas que a parte é maior que o todo. Se você vir uma estrela glamurosa, num filme, numa situação de grande perigo, você teme por ela com uma parte da sua mente, a parte emocional. Tanto faz que a sua mente que raciocina saiba muito bem que ela é a estrela do filme e que nada de muito ruim vai acontecer com ela. Se o suspense e a ameaça não fossem capazes de suplantar a razão, haveria muito pouco drama no mundo.”


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quarta-feira, 16 de setembro de 2015

0014) O gênero das veredas que se bifurcam



Um problema de xadrez, desses que aparecem na seção de variedades de um grande jornal diário (me dá prazer o fato de ainda poder usar referências dessa natureza), é uma pequena obra de ficção enxadrística.  Como num romance que se inicia, imaginamos, ao ver o problema, a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquela posição das peças, assim como na literatura imaginamos mil histórias anteriores ambientadas no universo que se põe em movimento quando lemos “Capítulo 1”. 

Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar seu possível fim.  Teoricamente seria possível prolongar indefinidamente aquela mini-partida, mas a certeza da existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a não descansar enquanto não a encontra.



Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e aguerrida entre duas mentes.  Já um problema de xadrez é um prazer solitário.  Uma mini-partida abstrata entre a mente que publicou o problema no jornal, e a mente que vai tentar resolvê-lo.  Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura policial.  O enigma foi armado, as pistas estão ali na página, visíveis a qualquer leitor.  O xadrez solitário de Marlowe é um detalhe sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do romance detetivesco.


Comecei ontem, 14 de setembro, a tradução de The Little Sister, que provavelmente terá o título A Irmãzinha.  Não é um dos melhores títulos de Chandler, embora mantenha a linha de simetria já empregada em The Big Sleep e The High Window, e cuja quarta instância seria The Long Goodbye.

Quando a editora Alfaguara/Objetiva me propôs a tradução de 7 livros de Chandler (seis romances e uma coletânea de contos), um dos motivos que me levaram a aceitar foi a possibilidade de traduzir livros que eu ainda não tinha lido. Não sou um desses leitores “completistas”, que quando admiram um autor não descansam enquanto não devorarem tudo que ele publicou.  Eu gosto de ir convivendo. Tem dezenas de livros de meus autores preferidos que eu talvez nunca venha a ler, mas não tenho pressa, estou guardando, porque preciso de ineditismo de vez em quando para enriquecer a convivência.

Quando veio a proposta de Marcelo Ferroni eu ainda não tinha lido Farewell, my Lovely (1940), The Long Goodbye (1953) nem The Little Sister (1949). Já traduzi os dois primeiros, que são excelentes, livros curiosamente muito parecidos em alguns aspectos e diferentes em outros.

E agora vou traduzir, sem ter lido, The Little Sister (1949), que a crítica nunca incensou muito e de cuja história só tenho a lembrança difusa de um filme que vi 30 anos atrás num Corujão qualquer. Fui conferir agora: trata-se de um filme do qual não lembro rigorosamente nada, a não ser uma cena de Marlowe chegando às escondidas, durante a noite, a uma casa no meio do mato: Detetive Marlowe em ação (“Marlowe”, 1969, direção de Paul Bogart, com James Garner).  Aliás... minto. É nesse filme que Bruce Lee visita o escritório de Philip Marlowe e faz ali uma intervenção demolidora, e não estou sendo metafórico. Deve ter no YouTube ou por aí.


Há duas estratégias opostas (não são as duas únicas) para traduzir um livro. A primeira é a estratégia invasiva: parar tudo e ler o livro a ser traduzido, principalmente se for obra de ficção, em regime de tempo integral e dedicação exclusiva, até ficar encharcado dele. Conforme o caso, ir logo assinalando trechos difíceis e merecedores de maior atenção. Ter tudo em mente, principalmente o desfecho. Já começar a traduzir sabendo como o livro acaba, ter pensado bastante a respeito, ter lido alguma coisa sobre o livro (quando é o caso).

A outra é a estratégia infiltradora, ou de stealth.  É ir lendo e traduzindo ao mesmo tempo, no escuro, sem saber nada além da lembrança de um filme que é primo distante do livro que está sendo agora dissecado linha por linha. Muitas vezes essa estratégia requer uma revisão cuidadosa, porque oscilações de interpretação, de sentido e outras pesam sobre o jeito de traduzir, e quando sabemos no final o que de fato era aquilo é preciso voltar e entender melhor aquele trecho do original.


Gregory Rabassa traduziu para o inglês obras como Cem Anos de Solidão de Garcia Márquez, O Jogo da Amarelinha de Julio Cortázar e Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Um amigo meu, norte-americano, disse certa vez que gostaria de saber espanhol para escrever em espanhol e ser retraduzido para o inglês por Rabassa. Seu livro de memórias If This Be Treason (Nova York: New Directions, 2005) fala sobre sua formação como tradutor e depois comenta sucessivamente várias das obras que traduziu, como foi o processo, o que acha do autor, etc.  Aqui no meu blog Mundo Fantasmo faço uma breve anotação sobre esse livro, onde Rabassa explica por que prefere começar a traduzir (mesmo um romance complexo) "no escuro", sem ter lido o livro.


Quem começa a traduzir já sabendo como acaba o livro (no caso de um romance policial, “já sabendo quem é o assassino”) se põe na posição de um autor, que concebe toda a trama, fica com ela bem clara na imaginação, esfrega as mãos animado e começa a escrever. Quem começa a traduzir rigorosamente “do zero”, resolvendo frase a frase à medida que se apresentam, se põe na posição do detetive, que desembarca no plot sabendo que precisa prestar atenção a tudo, porque se existe fair play no universo da literatura (coisa que jamais existiu no mundo real cá fora) a solução está escondida em algum canto.


The Little Sister começa com uma cliente, que nem sequer é loura, chegando no escritório de Marlowe, onde este acaba de matar uma mosca.  Não é uma loura fatal.  É uma moça que parece uma bibliotecária, e que carrega no ombro “uma dessas bolsas quadradas e desajeitadas que fazem a gente pensar numa irmã de caridade  levando primeiros socorros para os feridos”.  Aí está a capa da primeira edição do livro, cuja ilustração é de um realismo digno dos romances de Theodore Dreiser.

Vale lembrar que The Little Sister é o quarto romance da carreira de Philip Marlowe. Àquela altura, já tinham sentado na cadeira dos clientes do em seu escritório uma mulher fatal como Vivian Regan em The Big Sleep e uma garota tomboy  dessas por quem todo mundo torce, como Anne Riordan em Farewell, my Lovely.  Na Irmãzinha, quando a moça se apresenta a Marlowe (ela liga antes, e aparece lá depois) é precedida por uma curiosa reflexão do detetive:

Lá estava ela. Nem precisou abrir a boca para eu saber de quem se tratava. E nunca ninguém pareceu tão pouco com Lady Macbeth.
Chandler sempre achou insatisfatórias tanto as capas quanto as vendagens dos seus livros pela editora de Alfred Knopf, o editor que acreditou nele como “o novo Hammett”.  Aqui vão reproduções das capas originais, pela Knopf, dos seus quatro primeiros livros:






Tudo isto tem que ser julgado de acordo com o panorama de projetos gráficos da época, linguagens de época, texturas, cores, tudo. Mas nenhuma dessas capas me passa uma idéia tão clara do conteúdo como estas quatro, dos livros de bolso que de 1943 em diante fizeram a fama de Chandler. Estas, sim, têm o espírito dos livros. Ou será que nos acostumamos a ler os livros pensando nelas?





A diferença entre os dois estilos dá uma tese.



segunda-feira, 3 de agosto de 2015

0013) Philip Marlowe e o xadrez




Chandler parece ter sonhado, em algum momento, com um detetive-silhueta, como o Mandrake das histórias em quadrinhos de Lee Falk quando se tornava invisível.  Por mais que Marlowe seja um dos personagens mais vívidos do gênero, há um lado seu, o lado pessoa, não-detetive, que fica curiosamente em branco. Quando não está detetivando, Marlowe parece não existir de todo.  Um homem sem passado.



Como pessoa civil, Marlowe tem nome, documentos, endereço, carteira de motorista; mas não tem vida pessoal. É uma silhueta sem biografia, não tem nem sequer aqueles implantes de infância e família fictícias que eram concedidos aos replicantes de Blade Runner.  Uma silhueta apenas; corpórea, mas sem fisionomia.  Poucas vezes cita voluntariamente episódios de sua juventude, como quando lembra que quebrou o nariz jogando futebol na universidade.  A carta que Chandler escreveu para o leitor D. J. Ibberson (incluída em nossa edição de O longo adeus) diz provavelmente tudo que ele sabia sobre seu personagem, e acho que é o único documento em que aparecem muitas daquelas informações. Muitas delas o autor trazia na cabeça mas nunca tinha passado para o papel.



Philip Marlowe é um indivíduo de uma solidão incômoda.  Ele se mostra tão pouco ao leitor, que em tese seria seu cúmplice, seu voyeur, quanto se mostra aos policiais corruptos com quem bate de frente e a quem despreza.  Suas ocasionais confidências íntimas ao leitor não são papo franco de um cara para outro, são meditações poéticas sobre o canto de um pássaro ou sobre a tragédia das grandes cidades. As frases são perfeitas, mas quem as pronuncia é uma silhueta sem rosto.





Chandler encontra maneiras inusitadas de mostrar essa solidão, e uma delas é a paixão de Marlowe pelo xadrez. 



No meu trabalho existe uma hora de fazer perguntas e uma hora de deixar o sujeito fervendo até que esteja cozido. Todo bom policial sabe disto. É muito parecido com o xadrez e o boxe. Alguns adversários você tem que cercar e tentar derrubá-los. Outros basta ficar trocando golpes e eles se derrotam a si mesmos. (O sono eterno, cap. 3)



O xadrez pode ser metáfora para confronto, e na literatura policial alude diretamente ao duelo de inteligências entre o criminoso e o detetive.  Marlowe se dedica ao jogo com prazer e concentração, mas também com sua permanente ironia.



Pus o tabuleiro de xadrez na mesinha de café e armei um problema chamado A Esfinge.  Ele vinha reproduzido nas páginas finais de um livro sobre xadrez da autoria de Blackburn, o mago dos enxadristas ingleses, provavelmente o enxadrista mais dinâmico que já existiu, embora fosse incapaz de se classificar num torneio dentro do xadrez “guerra fria” que se disputa atualmente.  A Esfinge é um problema com solução em onze jogadas, e faz jus ao nome.  Os problemas no xadrez raramente exigem que se descubram mais do que quatro ou cinco lances.  Depois disso, a dificuldade para resolvê-los aumenta em progressão quase geométrica.  Um problema que exige onze lances é tortura em estado concentrado. De vez em quando, quando estou me sentindo mau o bastante, eu preparo o tabuleiro e fico tentando uma nova maneira de abordá-lo.  É uma maneira tranquila de endoidecer.  Você não chega a gritar, mas passa muito perto. (O sono eterno, cap. 40)





Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é.  Uma partida confronta dois adversários em igualdade de condições. Como em qualquer jogo, parte de uma situação inicial sempre a mesma, e vai refletindo a disputa de forças que passa a acontecer.  Um problema de xadrez é outra coisa.  É uma situação imaginária, proposta numa revista ou jornal através de um desenho da posição das peças no tabuleiro. Envolve poucas peças, e um desafio tipo: “As pretas jogam, e dão xeque-mate em três lances”, ou “as brancas deixam o jogo empatado com dois lances”, coisas assim.



A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que existe, sim, uma solução. É difícil de encontrar, e às vezes é preciso um raciocínio meio não-convencional para achar a resposta.  No problema, aliás, isso é até mais fácil de acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções não-alcançadas, para chegar até ali.  Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa anterior àquele momento do jogo.  Num problema, não: chega-se emocionalmente zerado àquele desenho, que na verdade é um desfecho.



O problema de xadrez é como a leitura de um romance policial.  É tanto um duelo de inteligências quanto uma partida, mas não é um duelo ao vivo, em tempo real.  É o duelo entre uma inteligência ausente e passada, que deixou um enigma pronto e armado, e uma inteligência presente, que tenta desvendá-lo, mas mesmo que o consiga não tem como fazer o adversário (o autor do problema) sequer saber o que aconteceu.  Quem decifra um problema de xadrez decifra-o sozinho, sem que o criador do enigma tome conhecimento.



Não me lembro de nenhuma história em que Marlowe dispute uma partida com quem quer que seja.  Ele volta para casa à noite, toma banho, ouve música no rádio, prepara comida, come, depois pega o tabuleiro e arma um problema, ou reconstitui uma partida inteira entre dois mestres do passado, como um pianista que volta a tocar um Noturno para não se esquecer, e para saborear a beleza da peça que executa.



Ela desligou e eu arrumei o tabuleiro de xadrez. Enchi o cachimbo, organizei o batalhão de peças e as examinei com cuidado à procura de uma barba por fazer ou de um botão solto, e depois joguei uma partida de campeonato entre Gortchakoff e Meninkin, setenta e dois lances até um empate, um exemplo precioso daquele caso de uma força irresistível que se depara com um objeto inabalável, uma batalha sem armamentos, uma guerra sem sangue, e o maior desperdício de inteligência humana que se pode encontrar do lado de fora de uma agência de publicidade. (O sono eterno, cap. 24)


Brancas jogam e dão mate em dois lances.  











quarta-feira, 10 de junho de 2015

0012) Chandler e a ficção científica



Quando um blogueiro diz que não vai mais atrasar postagens, isso tem o valor de uma resolução de Ano Novo sob o efeito de espumante ou de uma declaração de amor sem testemunhas.  Dito isto, vamos à luta. Atrasei o blog porque o Projeto Chandler foi para a prateleira por enquanto (a editora não está com pressa, há um livro sendo lançado agora e outro em preparo), e deu lugar ao Projeto Comando Sul, do qual já traduzi dois livros e estou na metade do terceiro.




A trilogia Comando Sul (Southern Reach) é uma série de ficção científica de Jeff VanderMeer, escritor, blogueiro, antologista e crítico, com uma obra longa, variada e bem escrita. Os três romances são Aniquilação (“Annihilation”, 2014), Autoridade (“”Authority”, 2014) e Aceitação (“Acceptance”, 2014).  O primeiro volume ganhou neste mês de junho, nos EUA, o Prêmio Nebula de Ficção Científica, que é considerado um prêmio mais exigente, por ser votado por escritores e pessoas do mercado profissional, enquanto o Prêmio Hugo é votado pelos fãs que comparecem a uma Convenção Mundial ou contribuem para ela.  Não li os romances concorrentes, mas em todo caso o livro de VanderMeer é muito bom, e pelo clima de estranheza, horror cósmico e revelações conceituais lembra os filmes de Andrei Tarkovsky, como Solaris (baseado num romance de Stanislaw Lem) e Stalker (baseado num romance dos irmãos Strugatski).



A trilogia Comando Sul está sendo publicada no Brasil pela Editora Intrínseca (Rio). Recomendo.




Voltando então ao nosso amigo Chandler. O que pensava ele da ficção científica? Nada muito bom, e não é de admirar. Parece que sua má vontade era para com os aspectos temáticos e os aspectos estilísticos da FC, por igual. Dá para ver isto no que ele escreveu em 1953 numa carta para seu agente literário H. N. Swanson:



Você já leu isso que chamam de ficção científica? É uma gréia. Escreve-se assim:



Fiz meu checkout com K19 em Adabaran III e atravessei a escotilha de crumalite no meu modelo 22 Sirius Hardtop. Encaixei o timejector em segunda e fui abrindo caminho entre a relva azul de manda. Minha respiração congelou em pretzels cor-de-rosa. Acionei as barras de calor e os Brylls dispararam em cinco pernas usando as outras duas para produzir vibrações de crylon. A pressão era quase insuportável, mas eu detectei a variação no meu computador de pulso através dos cisícitos transparentes. Apertei o gatilho. O fino raio violeta era frio como o gelo ao atingir os montes cor de ferrugem. Os Brylls se reduziram ao tamanho de meia polegada e eu me apressei a pisoteá-los com o poltex. Mas não foi o suficiente. Um clarão súbito me envolveu e a Quarta Lua acabava de nascer. Eu tinha exatamente quatro segundos para deixar no ponto o desintegrador mas o Google tinha me avisado que não era o bastante. Ele tinha razão.



Pagam dinheiro vivo por essa porcaria?
 


Muito se comenta o aparecimento (e num contexto plausível!) da palavra “Google”, com essa mesma grafia, e inicial maiúscula, tal como usamos hoje. Muito antes da Internet os matemáticos já usavam esse termo para indicar uma grande quantidade bem específica, que é o número 1 seguido de cem zeros. Vi essa palavra pela primeira vez traduzida como “gugol”, no livro Matemática e Imaginação (Edward Kasner e James Newman, Zahar Editores, 1976, tradução de Jorge Fortes).  É um dos livros mais acessíveis e divertidos sobre problemas matemáticos complexos; Jorge Luís Borges, que o resenhou com imediata identificação, disse não duvidar de que viria a seria um dos livros que iria mais reler e encher de notas manuscritas (Discusión, 1955, recompilação ampliada).



Os autores comentam o gugol, o gugolplex (um 1 seguido por um gugol de zeros) e assim por diante.  No mesmo capítulo, eles analisam o valor matemático do Aleph, outro conceito caro a Borges. Chandler certamente o leu em algum livro ou artigo sobre curiosidades matemáticas.



A sátira de Chandler à FC de pulp fiction não é disparatada, pelo contrário, acerta de maneira bem visível em alguns cacoetes dessa FC.  Os substantivos inventados (no caso, em número excessivo) cujo sentido tem que ser deduzido do contexto; a ação em cortes secos, rápidos, decididos, de homem prático, sem divagações; e, quando menos se espera, a única frase sem complicações e a única que realmente produz no leitor o efeito pavloviano pretendido: A pressão era quase insuportável... Nesse instante a aventura volta, o suspense e a incerteza arrebatam consigo o leitor, que não sabe o que é um Bryll nem um cisícito transparente, mas sabe que quando a pressão está insuportável está na hora de abandonar o submarino, a espaçonave, a caldeira do navio, o escambau.



“Computador de pulso” é outro detalhe interessante, mas, mais uma vez, as revistas novaiorquinas de FC falavam nisso há décadas. O melodrama de aventuras volta a dar o tom com “eu tinha exatamente quatro segundos para...”



Falarei noutro dia sobre a visão de Chandler sobre a literatura fantástica em geral. Mas vale a pena lembrar que o trecho acima, muito citado entre os chandlerismos, foi glosado de forma brilhante por Barry Malzberg, que usou suas frases integralmente, só que “enxertadas” numa história mais longa, no conto “Playback” (1990), publicado na antologia Universe 1, editada por Robert Silverberg e Karen Haber (Spectra Special Editions, 1990). O título do conto certamente faz alusão ao fato de que quando Chandler rabiscou sua pequena paródia estava trabalhando no seu último romance, Playback, “aquele do qual ninguém gosta”.



(Barry Malzberg)



Barry Malzberg (nascido em 1939) é uma mistura curiosa de escritor mercenário de pulp fiction e contestador literário com rupturas de grande impacto. Ganhou vários prêmios, tem romances importantes como Beyond Apollo (1972) e outros. Não me lembro de ter lido nenhum comentário dele sobre Chandler, mas seu premiado livro de ensaios The Engines of the Night (1982) tem um comovente artigo sobre os últimos dias de Cornell Woolrich (“William Irish”), um dos autores de policial noir que Chandler admirava. E o próprio Malzberg publicou (sob o pseudônimo de Mike Barry) uma série de 14 thrillers policiais entre 1973 e 1975  sobre o “Lone Wolf”, um típico vingador que executa bandidos ao longo de uma vingança pessoal e vai espiralando cada vez mais no vórtice das chacinas.






 



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

0011) Chandler e o Oscar



O trecho abaixo faz parte de um artigo de março de 1948, publicado em The Atlantic, revista para a qual o Raymond Chandler colaborou algumas vezes.

Fico intrigado com o sistema de votação.  Antes ela era exercida por todos os membros de todos os sindicatos, incluindo até mesmo extras e figurantes. Percebeu-se então que isso conferia um poder de voto excessivo a grupos sem muita importância, de modo que o voto para várias classes de prêmios ficou restrito aos sindicatos que presumivelmente tinham certo conhecimento crítico sobre o assunto.  Evidentemente, isso também não funcionou, e a mudança seguinte consistiu em fazer a indicação ser proposta pelos sindicatos de especialistas, e a votação apenas pelos membros da Academy of Motion Picture Arts and Sciences.



(foto: Ralph Morris, Hollywood Boulevard) 
 Na verdade, parece que não faz muita diferença o modo como se vota.  A qualidade de um trabalho continua a ser avaliada em termos de sucesso. Um trabalho extraordinário num filme que não deu certo não resulta em nada, enquanto que um trabalho rotineiro num filme vencedor acabará atraindo votos.  É tendo como pano de fundo essa adoração do sucesso que a votação se realiza, com a música incidental sendo proporcionada por uma torrente de propaganda nos jornais (que até as pessoas inteligentes leem em Hollywood) planejada para manter longe das cabeças todos os outros filmes que não os que estão sendo divulgados. O efeito psicológico disto é muito grande sobre mentes condicionadas a julgar o mérito exclusivamente pela bilheteria e pelo blá-blá-blá.  Os membros da Academia vivem nessa atmosfera, e são pessoas extremamente sugestionáveis, como são todos os que trabalham em Hollywood.  Se são contratados dos estúdios, fazem-nos sentir que é uma espécie de patriotismo ou espírito de grupo torcer pelos produtos do seu próprio setor.  Eles são informalmente prevenidos de que não devem desperdiçar seus votos,  não apostar em alguém que não tem chances, principalmente se for de outro estúdio qualquer.

Os dirigentes da Academia se preocupam muito em proteger a honestidade e o sigilo da votação.  Isso é feito com o auxílio de votos numerados e anônimos, e esses votos são enviados, não para alguma agência ligada à indústria do cinema, mas para uma conhecida firma de auditoria pública.  Os resultados, em envelopes selados, são levados por um funcionário da firma, diretamente para o palco do teatro onde se realiza a festa, e ali, pela primeira vez, de um em um, os ganhadores são revelados.  Não se pode ter mais precauções do que isto.  Ninguém poderia saber antecipadamente qualquer desses resultados, nem mesmo em Hollywood onde cada agente descobre os segredos mais bem guardados dos estúdios, sem muito esforço aparente.  Se há segredos em Hollywood, o que eu às vezes duvido, essa votação deve ser um deles. 



 (foto: Robert Frank, 1958)



domingo, 1 de fevereiro de 2015

0010) The Long Sleep


Durante este final/começo de ano estive envolvido com projetos de trabalho bem urgentes, prioridade absoluta.  Uma das não-prioridades (leia-se: trabalhos não remunerados) que voltou para o fim da fila foi este blog.  Lamento o hiato, reafirmo a intenção de manter esta bola quicando, e vamos em frente.

Após o lançamento de A Dama do Lago e de O Longo Adeus pela Alfaguara em 2014, estou às voltas com os dois lançamentos de 2015, cujas traduções estão sendo revisadas e discutidas, e cujo material extra começa a ser selecionado.  Os livros de 2015 serão The Big Sleep e Farewell, my Lovely.


O Sono Eterno já está na reta final de produção: tradução e textos revisados, capa escolhida, diagramação final em processo.  No momento, estou às voltas com o material adicional de Farewell, my Lovely (cuja tradução já foi entregue, e está em fase de revisão): estou escrevendo o prefácio, selecionando as cartas que entrarão como apêndice, e já entreguei a tradução de “The simple art of murder”, o artigo clássico de Chandler, que republicaremos nesse volume.


Os três volumes já prontos (os dois primeiros já estão nas livrarias) estão, portanto, organizados assim:

I – A DAMA DO LAGO
1.      Prefácio BT
2.      texto do romance
3.      “Doze anotações sobre a narrativa de mistério”
4.      4 cartas: para Erle Stanley Gardner (29-1-1946), Bernice Baumgarten (11-3-1949, 16-4-1951), H. R. Harwood (2-7-1951).

II – O LONGO ADEUS
1.      Prefácio BT
2.      texto do romance
3.      1 carta (para D. J. Ibberson, 19-4-1951)

III – O SONO ETERNO (a ser lançado em 2015)
1.      Prefácio BT
2.      texto do romance
3.      “Roteiristas em Hollywood” (artigo no Atlantic Monthly sobre o cinema dos estúdios)
4.      Cartas: para Alfred A. Knopf (19-2-1939), Charles W. Morton (15-1-1945), Mrs. Robert Hogan (8-3-1947), Hamish Hamilton (4-9-1950, 28-9-1950), Carl Brandt (15-11-1951), Edward Weeks (27-2-1957)

Chamo a atenção dos leitores para esses textos complementares aos romances. Chandler era um grande escrevedor de cartas, nas quais revela muita coisa de sua personalidade que não pode ser visível na obra de ficção, onde ele, filtrando tudo pela consciência de Philip Marlowe, não pode dar rédea solta a sua visão pouco convencional da literatura, do mercado editorial, do romance policial, etc.

Curiosamente, para quem era tão articulado e verboso, ele produziu relativamente pouco artigos para a imprensa, e nesta série de Alfaguara devemos incluir os mais importantes deles. “Roteiristas em Hollywood”, que virá publicado em O Sono Eterno, é um ataque feroz contra a desvalorização do trabalho do roteirista dentro dos grandes estúdios, o tipo do artigo escrito por quem não tem rabo preso e não tem nada a perder.