Chandler
parece ter sonhado, em algum momento, com um detetive-silhueta, como o Mandrake
das histórias em quadrinhos de Lee Falk quando se tornava invisível. Por mais que Marlowe seja um dos personagens
mais vívidos do gênero, há um lado seu, o lado pessoa, não-detetive, que fica
curiosamente em branco. Quando não está detetivando, Marlowe parece não existir
de todo. Um homem sem passado.
Como
pessoa civil, Marlowe tem nome, documentos, endereço, carteira de motorista;
mas não tem vida pessoal. É uma silhueta sem biografia, não tem nem sequer
aqueles implantes de infância e família fictícias que eram concedidos aos
replicantes de Blade Runner. Uma
silhueta apenas; corpórea, mas sem fisionomia.
Poucas vezes cita voluntariamente episódios de sua juventude, como
quando lembra que quebrou o nariz jogando futebol na universidade. A carta que Chandler escreveu para o leitor
D. J. Ibberson (incluída em nossa edição de O longo adeus) diz
provavelmente tudo que ele sabia sobre seu personagem, e acho que é o único
documento em que aparecem muitas daquelas informações. Muitas delas o autor
trazia na cabeça mas nunca tinha passado para o papel.
Philip Marlowe é um indivíduo de uma solidão
incômoda. Ele se mostra tão pouco ao
leitor, que em tese seria seu cúmplice, seu voyeur, quanto se mostra aos
policiais corruptos com quem bate de frente e a quem despreza. Suas ocasionais confidências íntimas ao
leitor não são papo franco de um cara para outro, são meditações poéticas sobre
o canto de um pássaro ou sobre a tragédia das grandes cidades. As frases são
perfeitas, mas quem as pronuncia é uma silhueta sem rosto.
Chandler encontra maneiras inusitadas de mostrar essa solidão,
e uma delas é a paixão de Marlowe pelo xadrez.
No meu trabalho existe uma hora de fazer perguntas e uma hora de deixar o sujeito fervendo até que esteja cozido. Todo bom policial sabe disto. É muito parecido com o xadrez e o boxe. Alguns adversários você tem que cercar e tentar derrubá-los. Outros basta ficar trocando golpes e eles se derrotam a si mesmos. (O sono eterno, cap. 3)
O xadrez pode ser metáfora para confronto, e na literatura
policial alude diretamente ao duelo de inteligências entre o criminoso e o
detetive. Marlowe se dedica ao jogo com
prazer e concentração, mas também com sua permanente ironia.
Pus o tabuleiro de xadrez na mesinha de café e armei um problema chamado A Esfinge. Ele vinha reproduzido nas páginas finais de um livro sobre xadrez da autoria de Blackburn, o mago dos enxadristas ingleses, provavelmente o enxadrista mais dinâmico que já existiu, embora fosse incapaz de se classificar num torneio dentro do xadrez “guerra fria” que se disputa atualmente. A Esfinge é um problema com solução em onze jogadas, e faz jus ao nome. Os problemas no xadrez raramente exigem que se descubram mais do que quatro ou cinco lances. Depois disso, a dificuldade para resolvê-los aumenta em progressão quase geométrica. Um problema que exige onze lances é tortura em estado concentrado. De vez em quando, quando estou me sentindo mau o bastante, eu preparo o tabuleiro e fico tentando uma nova maneira de abordá-lo. É uma maneira tranquila de endoidecer. Você não chega a gritar, mas passa muito perto. (O sono eterno, cap. 40)
Quem não é aficionado de xadrez pensa que um problema de
xadrez é a mesma coisa que uma partida de xadrez, mas não é. Uma partida confronta dois adversários em
igualdade de condições. Como em qualquer jogo, parte de uma situação inicial
sempre a mesma, e vai refletindo a disputa de forças que passa a acontecer. Um problema de xadrez é outra coisa. É uma situação imaginária, proposta numa
revista ou jornal através de um desenho da posição das peças no tabuleiro.
Envolve poucas peças, e um desafio tipo: “As pretas jogam, e dão xeque-mate em
três lances”, ou “as brancas deixam o jogo empatado com dois lances”, coisas assim.
A graça do problema é você saber, pelo enunciado, que
existe, sim, uma solução. É difícil de encontrar, e às vezes é preciso um
raciocínio meio não-convencional para achar a resposta. No problema, aliás, isso é até mais fácil de
acontecer, porque não houve toda uma partida cheia de peripécias e de intenções
não-alcançadas, para chegar até ali.
Numa partida de verdade é mais fácil ficar preso à narrativa anterior
àquele momento do jogo. Num problema,
não: chega-se emocionalmente zerado àquele desenho, que na verdade é um
desfecho.
O problema de xadrez é como a leitura de um romance policial. É tanto um duelo de inteligências quanto
uma partida, mas não é um duelo ao vivo, em tempo real. É o duelo entre uma inteligência ausente e
passada, que deixou um enigma pronto e armado, e uma inteligência presente, que
tenta desvendá-lo, mas mesmo que o consiga não tem como fazer o adversário (o
autor do problema) sequer saber o que aconteceu. Quem decifra um problema de xadrez decifra-o sozinho, sem que o
criador do enigma tome conhecimento.
Não me lembro de nenhuma história em que Marlowe dispute
uma partida com quem quer que seja. Ele
volta para casa à noite, toma banho, ouve música no rádio, prepara comida,
come, depois pega o tabuleiro e arma um problema, ou reconstitui uma partida
inteira entre dois mestres do passado, como um pianista que volta a tocar um
Noturno para não se esquecer, e para saborear a beleza da peça que executa.
Ela desligou e eu arrumei o tabuleiro de xadrez. Enchi o cachimbo, organizei o batalhão de peças e as examinei com cuidado à procura de uma barba por fazer ou de um botão solto, e depois joguei uma partida de campeonato entre Gortchakoff e Meninkin, setenta e dois lances até um empate, um exemplo precioso daquele caso de uma força irresistível que se depara com um objeto inabalável, uma batalha sem armamentos, uma guerra sem sangue, e o maior desperdício de inteligência humana que se pode encontrar do lado de fora de uma agência de publicidade. (O sono eterno, cap. 24)
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