quinta-feira, 19 de novembro de 2015

0015) Por que sentimos medo no cinema?





Li há pouco um comentário sobre o filme A Travessia (The Walk), de Robert Zemeckis, sobre Philippe Petit, aquele francês que estica uma corda-bamba entre dois arranha-céus e a atravessa, equilibrando-se. O comentário é da jornalista Maria do Rosário Caetano,  e toca num ponto interessante do cinema de suspense, o gênero em que Raymond Chandler mais trabalhou em seu período como roteirista de cinema.

Diz Rosário:

Eu que vou muito ao cinema, sofri muito com sucessivas apresentações aquele trailer. (...) Quase morri de pavor. Suei as mãos, tapei os olhos, um sofrimento. De que adianta a gente saber que o cara está vivíssimo, pois poucos anos atrás o entrevistamos no Brasil. Nada adianta, o pavor (a sensação de vertigem) é o mesmo!!!!

O cinema de suspense se deleita em produzir em nós esse tipo de efeito. Contra toda lógica, ficamos nervosos. Mesmo que pensemos: “Calma! Que besteira! É só um filme! São atores e efeitos especiais!  Se tivesse acontecido alguma coisa, a gente saberia!”. Mas não adianta.


Na minha tradução recente de A Dama do Lago (Alfaguara, 2014), incluí o texto Doze anotações sobre a narrativa de mistério, uma das melhores coisas já escritas sobre o romance policial.  (O texto foi encontrado entre os papéis de Chandler após sua morte; nunca foi publicado em vida.)  São doze comentários complementados por 13 adendos. O último desses adendos discute justamente o filme de suspense, ou de menace (“ameaça, perigo”), que era o termo usado por Chandler.  Diz ele:

(...) 
13. Como já foi sugerido acima, todas as ficções dependem do suspense, seja de que modo for. Mas o estudo da mecânica desse tipo extremo chamado menace, ameaça, perigo, revela a curiosa dualidade psicológica na mente do leitor ou de uma platéia mediante a qual, por um lado, é possível estar aterrorizado pelo que pode haver do outro lado da porta e ao mesmo tempo saber que a heroína ou a protagonista não vai ser morta, visto que é a heroína ou a protagonista. Se uma personagem interpretada por Claudette Colbert está passando um espantoso perigo, temos certeza absoluta de que Miss Colbert não vai se machucar pela simples razão de que é Miss Colbert.  Como é possível, então, que a mente da platéia tenha medo real da ameaça, sabendo destes fatos notórios? 

Entre as muitas respostas possíveis, eu proponho duas. Nossas reações ao som e às imagens visuais, ou a sua evocação por descrições verbais, independe da nossa razão. O elemento primitivo do medo nunca está distante da superfície dos nossos pensamentos; qualquer coisa que conseguir desencadeá-lo pode suplantar temporariamente a razão.  Daí que os filmes de menace concentram seu apelo sobre essa emoção tão antiga e tão irracional.  Poucos homens estão livres de sua influência. 

A outra resposta que sugiro é que em qualquer espécie de projeção, seja ela literária ou de outro tipo, a parte é maior do que o todo. A cena que está diante dos olhos domina o pensamento da audiência; o indivíduo normal não faz nenhuma tentativa de conciliar isto com outros aspectos da história.  Ele é arrastado pelo que acontece naquela cena. Quando você termina de ler o livro, ele pode, mas não necessariamente, ser focalizado como um todo e ser lembrado pelos seus méritos quando visto assim; mas, no momento da leitura, o capítulo é o fator dominante. A visão da imaginação emotiva é muito curta, mas também muito intensa.


Claudette Colbert, Maid of Salem, 1937

As pessoas que leem apenas os romances de Chandler acabam não tendo acesso a essas reflexões sobre a narrativa literária ou cinematográfica, coisa em que ele era mestre. Tinha algumas opiniões radicais, e não tinha papas na língua, mas a sua abordagem é sempre a de um leitor atento capaz de introspecção e de autoanálise. O leitor capaz de interromper uma leitura e pensar: “Por que gostei tanto desse trecho? O que há nessas palavras, no modo como foram escolhidas e arrumadas, que as fez produzir um impacto tão grande na minha emoção?”  Chandler parecia fazer isso o tempo todo.

Parece que Hitchcock se preocupava também com isso, porque um dos grandes choques que o filme Psicose (1960) produziu na platéia foi justamente pelo fato de ser um filme com uma grande estrela de Hollywood (Janet Leigh) e a estrela era assassinada no primeiro terço do filme. As platéias da época tiveram um momento de incredulidade, por certo. Não pela morte da personagem – mas pela “morte da atriz”.  Na época, Janet Leigh tinha uma enorme popularidade, e  por isso Hitchcock sugeriu ao roteirista Joseph Stefano que a estrela do filme fizesse o papel da moça que morre logo no começo. As cabeças pensantes do estúdio (dizia Hitchcock) teriam dito desde logo: “Bem, essa personagem é assassinada logo no primeiro rolo do filme, então vamos dar esse papel a qualquer uma, e dar a Janet Leigh o outro papel, o da irmã, que tem uma história de amor.”  Para ele, isso seria a solução mais idiota: “Toda a questão girava em torno justamente do fato da estrela ser morta – é isso que torna a cena tão inesperada.”  Por causa desse detalhe, no lançamento de Psicose foi recomendado aos cinemas que não deixassem ninguém entrar na sala depois de começada a projeção. “Eu não queria que alguém entrasse no meio do filme e ficasse se perguntando onde estaria Janet Leigh,” disse o diretor.


Janet Leigh, Psicose, 1960

Em 17 de janeiro de 2016:

Essa idéia parecia ser cara a Chandler, porque ele usou uma paráfrase perfeita do que dissera em suas “Doze anotações...”, numa fala atribuída a Sherry Ballou, o excêntrico mas arguto agente de atrizes hollywoodianas, em A Irmãzinha (cap. 18):

“O medo de hoje,” disse ele, “é sempre maior do que o medo de amanhã. É um fato básico das emoções dramáticas que a parte é maior que o todo. Se você vir uma estrela glamurosa, num filme, numa situação de grande perigo, você teme por ela com uma parte da sua mente, a parte emocional. Tanto faz que a sua mente que raciocina saiba muito bem que ela é a estrela do filme e que nada de muito ruim vai acontecer com ela. Se o suspense e a ameaça não fossem capazes de suplantar a razão, haveria muito pouco drama no mundo.”


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