sexta-feira, 10 de março de 2017

0019) Um decálogo para o romance "hardboiled"




O romance policial hardboiled é aquele cujos alicerces são as obras de Dashiell Hammett e de Raymond Chandler, assim como a ficção científica tem como alicerces as obras de Jules Verne e H. G. Wells e a literatura de terror tem como base as obras de E. T A. Hoffmann e de Edgar Allan Poe.

Este foi o típico parágrafo de abertura para chamar a atenção do leitor e para levar metade deles à pena e ao papel para discordar, brandindo o nome de algum gênio menosprezado.

O autor William Lashner preparou um decálogo do hardboiled em que enumera o que para ele são as coisas que um autor pode aprender da obra de Hammett e Chandler.



(Hammett, por Jay Stephens)


1) Um detetive tem sempre um código de conduta.

A história de detetive é um dos gêneros que se baseiam em conflito. (Nem todos o são, ao contrário do que dizem os manuais de roteiro para cinema. Conflito é um simples recurso entre mil outros.) Há o conflito intelectual entre o assassino (que não quer ser apanhado) e o detetive (que quer saber quem praticou aquele crime). E o conflito mais sutil, no caso do hardboiled, entre o detetive e a polícia, que muitas vezes representa o Estado corrupto ou indiferente. Numa situação assim, o detetive nem pode ser um banana, um maria-vai-com-as-outras, nem um cara totalmente cínico e amoral. Ele tem que ter uma ética, e manter-se fiel a ela mesmo debaixo de cacete. É o que Marlowe faz. Apanha dos bandidos, apanha da polícia, apanha até do cliente, mas não abre nem prum trem.

2) Um detetive, no final das contas, trabalha é para si mesmo.

De certa forma este mandamento é consequência do anterior. Mesmo contratado e pago por alguém que precisa resolver uma situação difícil, o detetive não é apenas um boneco assalariado. Ele tem valores mais altos e mais profundos, que muitas vezes o fazem trabalhar contra os interesses de um cliente que ele descobre ser desonesto ou traíra. E que às vezes o levam a investigar um caso até o fim sem que ninguém lhe pague para isso, por mera teimosia ética pessoal, como faz Philip Marlowe em O Longo Adeus ou Adeus, minha Querida.

3) Ser durão não é a mesma coisa que ser violento

Marlowe é um sujeito grande e forte (“1,85 de altura, 85 quilos”, O Longo Adeus). São numerosas as cenas em que alguma mulher, no primeiro instante, diz “Uau” e passa a chamá-lo de “grandão” ou “bonitão”. Nem por isso ele já chega batendo. Na verdade, se alguém se der o trabalho de computar os golpes desferidos em todas as cenas de briga de Marlowe, talvez chegue a um empate do tipo 400 golpes desferidos e 400 golpes sofridos. Marlowe  pode ser brutal em muitos momentos (chutando o saco ou o nariz do adversário, por exemplo) mas nunca é cruel. (Cruel é quem sente prazer em ser brutal.)



4) Faça o seu cenário tornar-se único, personalizado.

Literatura é a criação de atmosfera através da seleção cuidadosa do que descrever e do que narrar. Se é um policial hardboiled ou noir que está sendo escrito, é possível criar essa atmosfera mesmo descrevendo cidades ensolaradas e aparentemente alegres como Salvador ou Rio de Janeiro. Basta escolher o que mostrar, e escolher elementos que sejam indiscutivelmente daquele cenário (que possam ser reconhecidos de imediato por quem conheça bem a cidade) mas que, omitindo todo o resto e costurados entre si, criem uma cidade nova. Diz Lashner:

O modo como Chandler cria Los Angeles nos seus livros sobre Marlowe é de tirar o fôlego, mas tenho certeza de que não é um retrato totalmente preciso da cidade do tempo em que ele escrevia. Ele não estava redigindo um guia turístico: em vez disso, ele transformou a cidade em algo completamente identificável e ainda assim totalmente seu, algo que vive ainda.




5) As cenas têm que ter música.

“Ter música” (“to sing”) é uma expressão que se usa muito para dizer que algo tem brilho próprio, tem valor estético em si, independente do conjunto. Algumas cenas de Chandler são inesquecíveis: a abordagem ao navio-cassino em Adeus, minha Querida, o tiroteio na chuva em O Sono Eterno, a descoberta da mulher afogada em A Dama do Lago, Marlowe no estúdio de filmagem em A Irmã Mais Nova. É uma questão de timing, de compressão e dilatação do tempo narrativo, somada ao ponto de vista (geralmente cínico) de Marlowe sobre o que está acontecendo, a riqueza de estímulos visuais, o ritmo, a escolha das palavras, a esgrima dos diálogos. Talvez o maior elogio que Chandler fez ao seu mestre Hammett foi: “Ele escrevia cenas que ninguém jamais escrevera antes”.

6) Mas não sacrifique o contexto e o enredo.

Chandler era famoso por se concentrar nas cenas individuais e não ligar muito para o enredo. Outros escritores noir têm essa mesma característica, como Cornell Woolrich. O ideal (sempre) é ser capaz de trabalhar bem nos dois extremos, ao mesmo tempo. Autores contemporâneos como Cormac MacCarthy ou Dennis Lehane são elogiados justamente por conseguirem isto.

7) Beba com moderação.

Chandler foi alcoólatra e Philip Marlowe talvez também o tenha sido, embora não toque no assunto. Marlowe toma um drinque de vez em quando, mas quem não toma um drinque de vez em quando? Marlowe às vezes bebe até o estupor, mas quem às vezes não bebe até o estupor?  O detalhe é que o livro não é em torno disso nem faz um grande alarde disso. A bebida, o cigarro, o xadrez, são a família de Marlowe. São as coisas com que ele se relaciona quando está sozinho. Lashner comenta a quantidade de álcool consumida pelo casal Nick e Nora Charles em The Thin Man, e afirma que isso reflete a vida de Hammett, que segundo Chandler tinha “uma atemorizante capacidade de ingerir Scotch”.



  
8) Deixe seu sexismo na porta de entrada.

Lashner, a meu ver, comenta erradamente O Longo Adeus dizendo que Philip Marlowe “não consegue parar de pensar sexualmente em nenhuma mulher que cruza sua órbita”. Não acho que seja o caso. Ele sente uma atração por Eileen Wade, e no final do livro vai para a cama com outra mulher, mas Marlowe não é um mulherengo, como os resenhadores às vezes o descrevem. Nos sete romances em que aparece, ele só leva uma mulher para a cama nos dois últimos. De resto, dá uns amassos numa e noutra, beija uma ou outra, mas é menos pela intenção de comer alguém do que para entrar no jogo de uma testemunha (ou possível suspeita) e ver até onde ela lhe repassa informações. Marlowe não é um machista, não é um conquistador, é até meio metido a cavaleiro andante, em termos da Califórnia dos anos 1940. O mais comum é que uma mulher fique furiosa com ele quando vê que a tentativa de seduzi-lo não surte efeito, como acontece com Vivian Regan em O Sono Eterno e com Orfamay Quest e Dolores em A Irmã Mais Nova.


9) Use sua própria linguagem.

Lashner observa (agora corretamente) que Chandler sempre reconheceu ser Hammett o criador do modelo, mas ninguém pode negar que a linguagem dos dois é diferentíssima. Chandler injetou no modelo de Hammett uma formação clássica que tinha, um certo verniz aristocrático, uma amargura e cinismo mais evidentes que os de Hammett, um floreio verbal que Hammett talvez desdenhasse, mas que ele, Chandler, impôs ao gênero como uma marcação a ferro-em-brasa. Linguagem é o que Chandler trouxe ao gênero, e uma linguagem que exprime também uma ética própria, uma visão do mundo de um personagem. Basta ver a imensa distância estética entre as histórias de Chandler com e sem Marlowe. Sem Marlowe, a linguagem ou era incipiente (nos contos de aprendizado) ou se dilui porque não tem ninguém por trás (nas poucas tentativas dele, já autor maduro, em falar sem ser através de Marlowe).



10) Quem manda é a Pulp Fiction

Lashner lembra que tanto DH quanto RC escreveram para Black Mask e outras revistas de pulp fiction, e que o pecado mais grave da pulp fiction é entediar o leitor. Chandler nunca deixou de lembrar aos seus críticos que escrevia esse tipo de literatura, um melodrama concentrado, onde as coisas não aconteciam necessariamente como na vida real, Seu olhar fotográfico para pessoas e cenários e a verossimilhança psicológica das ações que narrava enganavam às vezes os críticos, que elogiavam seu realismo. “Não é realismo,” insistia Chandler, “é melodrama (=é pulp fiction)”.  Mas ele defendia que esse tipo de literatura era capaz também de reproduzir a realidade, só que evitando o tédio e o didatismo de um certo realismo norte-americano da época, para o qual ele torcia desdenhosamente o nariz.

Aqui, o artigo original de Lashner: