A história de detetive clássica (ao estilo de Conan Doyle,
Agatha Christie, Ellery Queen, Dorothy Sayers, etc.) se baseia em tramas
criminais minuciosamente arquitetadas que resultam num crime aparentemente
impossível, ou absurdo, ou sobrenatural.
Passado o choque inicial de incredulidade, cabe ao detetive sair
checando cada pista e cada depoimento e no final reconstituir a história,
mostrando o que realmente aconteceu e dando uma explicação cabal para cada
detalhe polêmico ou ininteligível.
Nem sempre é assim, claro.
Raymond Chandler, em suas “Doze Anotações sobre a Narrativa de Mistério”
(incluídas na minha tradução para a Alfaguara de A Dama do Lago) faz
severas críticas aos mistérios clássicos.
Sobre um livro famoso (e um dos meus favoritos), Assassinato no
Expresso do Oriente (1934) de Agatha Christie, ele afirma, com razão, que
“...toda a preparação do crime requer uma combinação tão caprichosa de
circunstâncias que jamais poderia parecer um fato real.”
A crítica é muito justa. Isto me faz gostar menos do
livro? De jeito nenhum. O leitor do policial clássico sabe que o
realismo daquelas histórias é meramente de verniz, de superfície, e que
estruturalmente são narrativas com um altíssimo grau de improbabilidade.
Trata-se de um problema de lógica, e os personagens estão ali como atores
interpretando papéis numa peça.
Nessas mesmas “Doze Anotações...” Chandler faz reparos
justos a outras narrativas clássicas, como “A faixa malhada” de Doyle e “A
carta roubada” de Edgar Allan Poe (sempre em nome da plausibilidade). Há outra
menção, no entanto, que produziu uma sincronicidade com algumas das minhas
memórias pessoais. Chandler afirma a certa altura:
Dado que há leitores com diferentes formas de inteligência, alguns serão capazes de solucionar um crime muito bem disfarçado, e outros se deixarão enganar pelos mais transparentes enredos. (Será que “A liga dos cabeças vermelhas” poderia iludir um leitor moderno?)
Num post anterior (“A memória do leitor – 1”) reproduzi a
capa do Mistério de Magazine de Ellery Queen de setembro de 1962 (vai
aqui embaixo, de novo), onde li o meu primeiro conto de Chandler, “O último
caso de Philip Marlowe” (“The Pencil”).
Na mesma revista, como pode ser visto na capa, foi publicado
um texto de Thomas L. Stix intitulado “Os 7 erros na Liga dos Cabeças
Vermelhas”, que é uma breve e impiedosa desconstrução dessa aventura famosa de
Sherlock Holmes.
Se o leitor não conhece esse conto, não será muito difícil
encontrá-lo; faz parte da coletânea As Aventuras de Sherlock Holmes, que
tem várias edições brasileiras, sendo a melhor a edição da Zahar (2010),
comentada por Leslie S. Klinger. É a
história de Jabez Wilson, um homem de cabelos ruivos que consegue um emprego
meio bizarro, onde sua missão é copiar à mão a Enciclopédia Britânica,
mas o emprego só poderia ir para alguém com cabelo ruivo. Sherlock Holmes consegue descobrir um plano
diabólico de assalto por trás dessa atividade aparentemente sem nexo.
Nas imagens abaixo reproduzo o texto de Thomas L. Stix,
apontando o que ele considera 7 erros graves de lógica, de continuidade e de bom
senso, no conto de Doyle. (No final, Ellery Queen, na pele do editor Frederic
Dannay, não resiste a apontar um oitavo erro ou inconsistência do conto.) (Clique na imagem para ampliar)
Não sei se houve intenção do editor de publicar lado a lado o conto de Doyle, a desconstrução do conto de Doyle, e um conto de Chandler, que em seus manuscritos ele havia criticado. (As “Doze Anotações...” nunca foram publicadas em vida de Chandler; foram encontradas entre seus papéis, e sua primeira versão é datada de 1949.)
Tenho uma lembrança vívida, não de ter lido o conto de
Chandler nessa revista, mas de estar indo no ônibus do bairro do Monte Santo,
em Campina Grande, rumo ao apartamento de minha tia Adiza, ler esse texto de
Stix sobre o conto de Doyle e me ficar maravilhado (eu tinha doze anos) pela
possibilidade de alguém fazer um desmonte crítico de uma daquelas histórias que
para mim eram mais definitivas e irretocáveis do que as Escrituras.
(ilustração de Sidney Paget para "The Red-Headed League")
Jorge Luís Borges disse que o romance policial criou um novo
tipo de leitor, o leitor desconfiado, o que lê não apenas para fundir seu
espírito ao espírito do autor que conta a história, mas também para desconfiar
dele, suspeitar dele, saber que o autor de um romance policial é um cara que
está jogando um jogo e não merece muita fé.
Eu diria que a leitura desse texto nessa revista me transformou de certo
modo num crítico, porque pela primeira vez alguém pegou um dos meus monstros
sagrados (Doyle) e mostrou que ele também errava; tal como “também cochilava o bom
Homero”.
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