quarta-feira, 24 de setembro de 2014

0002) Traduzir





Um tradutor é muitas vezes um sujeito que fica inventando problemas onde não existe nenhum. Tem um pequeno detalhe que parece incontestável, já resolvido, ponto-pacífico, “taken for granted”.  E o tradutor põe o olho em cima, põe o dedo em cima, e passa duas horas matutando sobre aquele grãozinho de poeira.
Em literatura, que se absorve pelos olhos, qualquer grãozinho indesejável de poeira vira um argueiro em pleno olho. No caso do tradutor, uma noite de insônia e de medo do ridículo.


Esta é a sina dele, e também a do revisor (alô, colegas revisores, lembrei de vocês!).  Deveria ser também a do autor, mas nem todo autor – para o bem e para o mal – é cuidadoso assim.  Compreende-se.
O que o autor está despejando no papel é, para usar uma expressão melodramática, “o tumulto íntimo que arde em seu espírito”.  Já o tradutor e o revisor estão lidando com o tumulto íntimo alheio. Não podem correr o risco de tratar levianamente algo precioso que não é seu.
Traduzir é, de certo modo, escrever em português o que o autor original possivelmente escreveria se trabalhasse em nosso idioma.
É quase um processo de psicografia, de escrever em nome de outra pessoa, tentando preservar os modos de expressão, o estilo, os cacoetes, os pequenos hábitos e as pequenas manias verbais que todo escritor tem.




Ao mesmo tempo, o tradutor tem que saber que o que faz é provisório, é datado.  Ele não escreve somente com o que tem, mas com o que sua época tem a oferecer.  Daí que os grandes textos precisem ser retraduzidos de vez em quando.  Não para que tenhamos traduções “melhores”, “com menos erros”, “mais corretas”, mas para termos reinterpretações verbais de um objeto verbal, que é um livro.

Não existe “a tradução melhor”.  Mesmo a frase-símbolo do inglês rudimentar, “the book is on the table”, admite mais de uma tradução. O livro está na mesa.  O livro está sobre a mesa.  O livro está em cima da mesa.

E o tradutor não deve esquecer que um texto não é só sentido.  Um texto, principalmente quando é um texto literário, tem ritmo, sonoridade, cadência, uma “textura” feita de sons das vogais e das consoantes, feita também de imagens.  Por “imagens” me refiro ao modo como a extensão dos parágrafos e das linhas, vista de súbito quando viramos a página, nos adverte sobre o ritmo interno do texto que estamos a ponto de ler – p. ex., se são duas páginas de texto corrido, cerrado, concentrado, sem pausas, ou se é uma sucessão de linhas curtas de diálogo.
Tudo isso tem que ser traduzido também.

Geralmente não se consegue, mas, como diria Albert Camus, é preciso imaginar que Sísifo é um cara feliz.


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