sábado, 27 de setembro de 2014

0004) O sorriso do detetive





O “Estado de São Paulo” publicou hoje uma matéria de Ubiratan Brasil sobre o relançamento da obra de Chandler pela Alfaguara, com as minhas traduções. Aqui:



A matéria é ilustrada com um clip do trailer do filme The Big Sleep (“À Beira do Abismo”) de Howard Hawks, que começa com uma divertida cena metalinguística. 


Philip Marlowe (Humphrey Bogart) entra na livraria de Geiger (local importante da história) e diz à moça que procura um livro de ação e suspense, “parecido com O Falcão Maltês”.  Ela diz: “Bem, temos este aqui, que é ainda melhor do que O Falcão MaltêsÉ o mais novo best-seller de Raymond Chandler, The Big Sleep.






Marlowe / Bogart abre o livro, começa a ler em voz alta, e o áudio se funde com a voz de Marlowe, já numa cena do filme:


“Às vezes me pergunto que lance estranho do destino me tirou da tempestade para aquela casa solitária nas sombras...”


Chandler gostava da adaptação feita por Hawks (pelo menos “a primeira metade”, que é fiel ao livro), e já a citou como exemplo de como fazer um bom filme policial.


Quanto a Bogart, o escritor o aprovou: “Ele consegue parecer perigoso mesmo sem uma arma na mão.”




Bogart tinha de fato um aspecto ameaçador, mas talvez o seu diferencial fosse o humor que ele projetava em suas falas e gestos quando sorria.  Seu sorriso nunca era o sorriso-colgate que vemos hoje nos atores da TV aberta, escancarando dentaduras branquíssimas e reluzentes ao menor pretexto.  Sorrisos tecnicamente ensaiados diante do espelho.

Chandler era muito atento às expressões faciais dos seus personagens, e nada lhe era mais visível do que os “sorrisos novela das sete” que eles dão para Marlowe.


The Big Sleep, cap. 11: 
Ela me deu um daqueles sorrisos que os lábios já esqueceram antes mesmo dele chegar aos olhos.
As mulheres, de quem se exige que sorriam, muito mais do que aos homens, muitas vezes chegam a extremos caricaturais para manter essa pose:

The Big Sleep, cap. 24: 
Então seus lábios se moveram devagar, cuidadosamente, como se fossem lábios artificiais e tivessem que ser manipulados com barbantes.





(Audrey Totter, no filme The Lady in the Lake)




Bogart tinha um sorriso espontâneo, não calculado, que era ainda mais ressaltado pela sua cara feiosa e pelo jeito meio impaciente que ele imprimia a todos os seus personagens.  Quando sorria, estava sorrindo mesmo.
O fato de ele ter feito o Sam Spade de O Falcão Maltês certamente o credenciou para fazer Marlowe, que é um personagem mais complexo e mais bem desenvolvido pelo autor.  Meio sem querer, entrou para o imaginário popular como o detetive durão mas sensível, capaz de ser violento mas jamais cruel.


Nenhum comentário:

Postar um comentário