Esse
termo usado para indicar os detetives durões do romance policial não se deixa traduzir
muito bem. A idéia se refere a ovos excessivamente cozidos, até ficarem duros
demais. (Em algumas escolas gastronômicas é refinado comer ovos apenas
aquecidos.) Passa a sensação de dureza (=valentia, violência, brabeza), e também
a percepção de algo ou alguém fervido, castigado, curtido pela vida.
São
aqueles detetives de sobretudo e chapéu mole interpretados por Robert Mitchum,
olhos de peixe morto, barba por fazer, a meio metro do ébrio de Vicente
Celestino, ou então os policiais-de-delegacia durões e silenciosos de Richard
Widmark .
O
detetive durão é um arquétipo obrigatório da pulp fiction, e não tem que ser
necessariamente um detetive particular, pode ser um policial de terno como o
Coogan de Clint Eastwood. E pode ser um desses personagens, tão presentes nessa
literatura, do sujeito durão mas pacífico, em cujos calos alguém, geralmente
bandidos, pisam por desatenção, o que o transforma em caçador implacável até
acertar as contas, como o protagonista de Le
joli bleu de la Côte Ouest (1976), de Jean-Patrick Manchette.
Dessa
esquina a gente descortina uma avenida de um milhão de histórias sobre
detetives hardboiled, fustigados pela vida. Um homem como Philip
Marlowe, dizia Chandler, é um fracassado, sabe disso e sabe que todo mundo
sabe. Um homem com os talentos e a solidez dele poderia estar rico. Se não
ficou rico, isso é um defeito. Marlowe poderia ficar rico se entrasse (low profile,
sem alarde, só para fazer uma grana certa e cair fora) em qualquer dos
esquemas que descobre ou que presencia. É pobre porque quer. Se quisesse, estava
rico. Naquele tempo (naquele tempo!) muita gente de bem pensava assim.
Marlowe
tem para algumas mulheres um certo poder hipnótico. Ele afirma estar entrando
no jogo delas e elas acreditam. Nós sabemos que não, porque o que ele está
prometendo fazer é totalmente anti-Marlowe. Mas ela é aquela proverbial ingênua
de Hollywood, que pensa que a vida é um filme com ela. Mas é ela que está de
figurante no filme dele.
Marlowe
mente, mas percebe-se nele um certo jogo de cintura de certos puritanos que
tentam conviver com os pruridos da própria consciência. Marlowe procura não
mentir. “Você trabalha para Ballou, o agente?”, pergunta alguém. Marlowe diz
apenas: “Estou vindo de lá agora.” E o outro: “Que legal, eu gostaria de
trabalhar ali.” Ele subentendeu uma confirmação que Marlowe, textualmente, não
lhe deu. Marlowe poderia jurar num tribunal que jamais afirmou que trabalhava
com Ballou, e não estaria mentindo. Mas ele fez com que o interlocutor pensasse
que sim, e não se ofereceu para esclarecer.
O
puritano é um cara que, não podendo mentir para não ir arder em algum inferno (sei lá em que
inferno teme arder esse povo), não mente, mas planeja toda sua navegação de modo
a nunca precisar mentir. Dar um jeito de evitar que certas perguntas sejam
feitas. Quando Marlowe é interrogado pela polícia, sempre chega um ponto em que
ele diz, “parou”, e se cala.
Chandler
criticava em muitos escritores contemporâneos seus um desconhecimento
negligente de como funcionava o próprio universo que estavam descrevendo, o dos
policiais, bandidos, quadrilhas, autoridades, etc. Não conheciam porque eram homens pacatos que
viviam em suas casas com esposa, crianças e contas a pagar. Uns poucos contavam
histórias que tinham vivido. Experiência de ganhar a vida como detetive, antes,
só Dashiell Hammett.
(Hammett,_by_Jay_Stephens)
Ou
então, cada um dava o joão-sem-braço que o favorecia: o grande amigo de
Chandler, Erle Stanley Gardner, tinha experiência de tribunal e criou o
advogado-detetive Perry Mason, herói de dezenas de duelos finais eletrizantes
em pleno tribunal do júri.
Chandler
se informava. Ele não tinha apenas a aparência de um contabilista (como
ironizavam alguns colegas em Hollywood), tinha a mentalidade também. Estudava os
direitos civis e profissionais de um detetive e qual a maneira mais adequada de
estar sempre dentro da lei. A maioria dos autores (dizia ele) descreve
investigações policiais sem pé nem cabeça, que fariam um policial de verdade
estourar de riso e perder o respeito pelo livro.
Um
policial, irritado com Marlowe, diz: “Sua licença está cassada, a partir deste
instante.” Marlowe rebate: “Minha licença é válida até ser revogada pela
entidade que a emitiu. Não antes.” O tira muda de assunto. Marlowe sabe que
está na lei, e sabe que o policial também sabe. E que há pelo menos uma
testemunha.
A
cara de pau que tem Marlowe para se meter em situações que dificilmente dariam
certo pode vir da grande admiração de Chandler pelo Perry Mason criado por Gardner.
Mason
ficou famoso ao aparecer numa série de TV, interpretado por Raymond Burr, mas
foi nos livros que mostrou todos os seus recursos, metendo-se em casos onde ele,
frequentemente, precisava solver um homicídio para salvar seu cliente. É um
personagem mais elétrico, mais inquieto e mais loquaz do que Marlowe, que é
meio ensimesmado. O que os dois têm em comum é uma habilidade enorme com as
palavras, muitas vezes dizendo uma coisa mas querendo significar o contrário.
(Existe algo de Mason no advogado Farrell, que faz uma breve aparição nos
capítulos finais de A Irmãzinha,
que aliás deve sair em breve pela Alfaguara/Objetiva.)
Sabendo
que pode vir a ser chamado a juramento, o herói se esforça para não precisar
mentir. Marlowe sempre sabe ficar calado, e é com certo prazer que ele reitera:
“Eu não disse nada.” Em O Longo Adeus,
quando Terry Lennox o procura em casa, desorientado, de arma na mão, Marlowe o
recebe mas avisa:
Se você cometeu um crime ou qualquer coisa que a lei possa considerar um crime, estou falando de crime sério, não pode me dizer. Dois: se você tem conhecimento concreto de que algum crime assim foi cometido, também não pode me falar a respeito.
Ele
sabe como poderá ser interrogado mais adiante, pela polícia, e sabe que para
ele é bem melhor não saber, primeiro porque vai ter que mentir, e segundo
porque pode acabar se traindo. Mas isso evita também que ele e Lennox
aproveitem praticamente a única chance que terão, em bastante tempo, de
conversar sobre o assassinato de que ele estava fugindo. Marlowe nunca terá
100%, nem digo de certeza, mas 100% de convicção sobre o que aconteceu na noite
daquele crime.
Por
um lado, Marlowe é um puritano incorruptível, até porque, em grande medida, ele
próprio despreza os santarrões e os pregadores de moral. Marlowe de vez em
quando mente, suborna, ameaça, dá bebida a alcoólicos para que desabafem melhor
seus rancores ou suas suspeitas. Ele não é durão porque pega todas as mulheres
(na verdade, ele só pega alguém pra
valer nos dois últimos livros), nem porque espanca os bandidos (no mínimo o
placar de surras dele é empatado). É durão porque quando é preciso sabe ser
cruel, sabe ser cínico para escarnecer das fraquezas da granfinagem que ele
despreza. E porque é capaz de saber que uma pessoa vai se suicidar naquela
noite e dizer aos criados que podem ir dormir, que está tudo bem.
Em
O Longo Adeus, ele diz:
A outra parte de mim queria ir embora e ficar longe, mas essa era a parte a quem eu nunca dava ouvidos. Porque se alguma vez eu a tivesse ouvido eu teria ficado na cidade onde nasci e trabalhado no armazém local e casado com a filha do patrão e tido cinco filhos e lido para eles os balões dos quadrinhos nos jornais das manhãs de domingo e dado uns tapas num e noutro que saíssem da linha e teria entrado em querelas com a esposa sobre quanto seria a mesada de cada um e quais os programas que eles tinham licença de assistir no rádio e na TV. Eu podia até ter ficado rico, um interiorano rico, numa casa de oito quartos, dois carros na garagem, frango todo domingo e as Seleções do Reader’s Digest na mesa da sala, a esposa com o cabelo duro de permanente e eu com um cérebro igual a uma saca de cimento Portland. Pode ficar pra você, amigo. Eu quero a cidade grande, sórdida, maculada e corrompida.