O romance policial hardboiled
é aquele cujos alicerces são as obras de Dashiell Hammett e de Raymond
Chandler, assim como a ficção científica tem como alicerces as obras de Jules
Verne e H. G. Wells e a literatura de terror tem como base as obras de E. T A.
Hoffmann e de Edgar Allan Poe.
Este foi o típico parágrafo de abertura para chamar a
atenção do leitor e para levar metade deles à pena e ao papel para discordar,
brandindo o nome de algum gênio menosprezado.
O autor William Lashner preparou um decálogo do hardboiled em que enumera o que para ele
são as coisas que um autor pode aprender da obra de Hammett e Chandler.
(Hammett, por Jay Stephens)
1) Um detetive tem
sempre um código de conduta.
A história de detetive é um dos gêneros que se baseiam em
conflito. (Nem todos o são, ao contrário do que dizem os manuais de roteiro
para cinema. Conflito é um simples recurso entre mil outros.) Há o conflito intelectual
entre o assassino (que não quer ser apanhado) e o detetive (que quer saber quem
praticou aquele crime). E o conflito mais sutil, no caso do hardboiled, entre o detetive e a polícia,
que muitas vezes representa o Estado corrupto ou indiferente. Numa situação
assim, o detetive nem pode ser um banana, um maria-vai-com-as-outras, nem um
cara totalmente cínico e amoral. Ele tem que ter uma ética, e manter-se fiel a
ela mesmo debaixo de cacete. É o que Marlowe faz. Apanha dos bandidos, apanha
da polícia, apanha até do cliente, mas não abre nem prum trem.
2) Um detetive, no
final das contas, trabalha é para si mesmo.
De certa forma este mandamento é consequência do
anterior. Mesmo contratado e pago por alguém que precisa resolver uma situação
difícil, o detetive não é apenas um boneco assalariado. Ele tem valores mais
altos e mais profundos, que muitas vezes o fazem trabalhar contra os interesses
de um cliente que ele descobre ser desonesto ou traíra. E que às vezes o levam a investigar um caso até o fim sem que ninguém lhe pague para isso, por mera teimosia
ética pessoal, como faz Philip Marlowe em O
Longo Adeus ou Adeus, minha Querida.
3) Ser durão não é
a mesma coisa que ser violento
Marlowe é um sujeito grande e forte (“1,85 de altura, 85
quilos”, O Longo Adeus). São
numerosas as cenas em que alguma mulher, no primeiro instante, diz “Uau” e
passa a chamá-lo de “grandão” ou “bonitão”. Nem por isso ele já chega batendo.
Na verdade, se alguém se der o trabalho de computar os golpes desferidos em
todas as cenas de briga de Marlowe, talvez chegue a um empate do tipo 400
golpes desferidos e 400 golpes sofridos. Marlowe pode ser brutal em muitos momentos (chutando
o saco ou o nariz do adversário, por exemplo) mas nunca é cruel. (Cruel é quem sente prazer em ser brutal.)
4) Faça o seu
cenário tornar-se único, personalizado.
Literatura é a criação de atmosfera através da seleção
cuidadosa do que descrever e do que narrar. Se é um policial hardboiled ou noir que está sendo escrito, é possível criar essa atmosfera mesmo
descrevendo cidades ensolaradas e aparentemente alegres como Salvador ou Rio de Janeiro.
Basta escolher o que mostrar, e escolher elementos que sejam indiscutivelmente
daquele cenário (que possam ser reconhecidos de imediato por quem conheça bem a
cidade) mas que, omitindo todo o resto e costurados entre si, criem uma cidade
nova. Diz Lashner:
O modo como Chandler cria Los Angeles nos seus livros sobre Marlowe é
de tirar o fôlego, mas tenho certeza de que não é um retrato totalmente preciso
da cidade do tempo em que ele escrevia. Ele não estava redigindo um guia
turístico: em vez disso, ele transformou a cidade em algo completamente
identificável e ainda assim totalmente seu, algo que vive ainda.
5) As cenas têm
que ter música.
“Ter música” (“to sing”) é uma expressão que se usa muito
para dizer que algo tem brilho próprio, tem valor estético em si, independente
do conjunto. Algumas cenas de Chandler são inesquecíveis: a abordagem ao navio-cassino
em Adeus, minha Querida, o tiroteio
na chuva em O Sono Eterno, a
descoberta da mulher afogada em A Dama do
Lago, Marlowe no estúdio de filmagem em A
Irmã Mais Nova. É uma questão de timing,
de compressão e dilatação do tempo narrativo, somada ao ponto de vista
(geralmente cínico) de Marlowe sobre o que está acontecendo, a riqueza de
estímulos visuais, o ritmo, a escolha das palavras, a esgrima dos diálogos.
Talvez o maior elogio que Chandler fez ao seu mestre Hammett foi: “Ele escrevia
cenas que ninguém jamais escrevera antes”.
6) Mas não
sacrifique o contexto e o enredo.
Chandler era famoso por se concentrar nas cenas
individuais e não ligar muito para o enredo. Outros escritores noir têm essa mesma característica, como
Cornell Woolrich. O ideal (sempre) é ser capaz de trabalhar bem nos dois
extremos, ao mesmo tempo. Autores contemporâneos como Cormac MacCarthy ou Dennis
Lehane são elogiados justamente por conseguirem isto.
7) Beba com
moderação.
Chandler foi alcoólatra e Philip Marlowe talvez também o
tenha sido, embora não toque no assunto. Marlowe toma um drinque de vez em
quando, mas quem não toma um drinque de vez em quando? Marlowe às vezes bebe
até o estupor, mas quem às vezes não bebe até o estupor? O detalhe é que o livro não é em torno disso
nem faz um grande alarde disso. A bebida, o cigarro, o xadrez, são a família de
Marlowe. São as coisas com que ele se relaciona quando está sozinho. Lashner
comenta a quantidade de álcool consumida pelo casal Nick e Nora Charles em The Thin Man, e afirma que isso reflete
a vida de Hammett, que segundo Chandler tinha “uma atemorizante capacidade de
ingerir Scotch”.
8) Deixe seu
sexismo na porta de entrada.
Lashner, a meu ver, comenta erradamente O Longo Adeus dizendo que Philip Marlowe
“não consegue parar de pensar sexualmente em nenhuma mulher que cruza sua
órbita”. Não acho que seja o caso. Ele sente uma atração por Eileen Wade, e no
final do livro vai para a cama com outra mulher, mas Marlowe não é um mulherengo,
como os resenhadores às vezes o descrevem. Nos sete romances em que aparece, ele
só leva uma mulher para a cama nos dois últimos. De resto, dá uns amassos numa
e noutra, beija uma ou outra, mas é menos pela intenção de comer alguém do que
para entrar no jogo de uma testemunha (ou possível suspeita) e ver até onde ela
lhe repassa informações. Marlowe não é um machista, não é um conquistador, é
até meio metido a cavaleiro andante, em termos da Califórnia dos anos 1940. O
mais comum é que uma mulher fique furiosa com ele quando vê que a tentativa de
seduzi-lo não surte efeito, como acontece com Vivian Regan em O Sono Eterno e com Orfamay Quest e
Dolores em A Irmã Mais Nova.
9) Use sua própria
linguagem.
Lashner observa (agora corretamente) que Chandler sempre
reconheceu ser Hammett o criador do modelo, mas ninguém pode negar que a
linguagem dos dois é diferentíssima. Chandler injetou no modelo de Hammett uma
formação clássica que tinha, um certo verniz aristocrático, uma amargura e
cinismo mais evidentes que os de Hammett, um floreio verbal que Hammett talvez
desdenhasse, mas que ele, Chandler, impôs ao gênero como uma marcação a
ferro-em-brasa. Linguagem é o que Chandler trouxe ao gênero, e uma linguagem que
exprime também uma ética própria, uma visão do mundo de um personagem. Basta
ver a imensa distância estética entre as histórias de Chandler com e sem
Marlowe. Sem Marlowe, a linguagem ou era incipiente (nos contos de aprendizado)
ou se dilui porque não tem ninguém por trás (nas poucas tentativas dele, já autor maduro, em falar sem ser
através de Marlowe).
10) Quem manda é a
Pulp Fiction
Lashner lembra que tanto DH quanto RC escreveram para Black Mask e outras revistas de pulp fiction, e que o pecado mais grave
da pulp fiction é entediar o leitor.
Chandler nunca deixou de lembrar aos seus críticos que escrevia esse tipo de
literatura, um melodrama concentrado, onde as coisas não aconteciam
necessariamente como na vida real, Seu olhar fotográfico para pessoas e cenários
e a verossimilhança psicológica das ações que narrava enganavam às vezes os
críticos, que elogiavam seu realismo. “Não é realismo,” insistia Chandler, “é
melodrama (=é pulp fiction)”. Mas ele defendia que esse tipo de literatura era
capaz também de reproduzir a realidade, só que evitando o tédio e o didatismo
de um certo realismo norte-americano da época, para o qual ele torcia
desdenhosamente o nariz.
Aqui, o artigo original de Lashner: