Muito
se fala no espírito de cavaleiro andante de Philip Marlowe, em parte devido às
ironias arturianas que Raymond Chandler usa para tornar mais vívido o ambiente,
como nos parágrafos iniciais de O Sono Eterno, onde ele descreve um
vitral com um cavaleiro tentando salvar uma donzela em perigo.
No
famoso trecho final do seu ensaio “A Simples Arte do Crime”, Chandler diz que
seu detetive deve ser alguém “who is neither tarnished nor afraid”. É o
cavaleiro sans peur et sans reproche dos velhos romances
cavalarianos.
Philip
Marlowe, contudo, é mais quixotesco do que arturiano. Apanha tanto quanto Dom
Quixote, e tem igualmente o hábito de forçar-se a ver uma Dulcinéia na pele de
qualquer Lucrécia Bórgia que cruza o seu caminho.
O ensaio “A Simples Arte do Crime” é um dos
complementos que selecionei para a edição (em breve nas livrarias e na web) de Adeus,
minha querida (Farewell, my lovely). Será o quarto romance de Chandler traduzido e organizado por mim
para a Objetiva/Alfaguara, depois de A Dama do Lago, O Longo Adeus
e O Sono Eterno.
Outro
complemento do livro são mais uma vez algumas cartas de Chandler, que são
inimitáveis, e, em alguns sentidos, superiores aos romances.
Chandler
reduz a pó O Caso dos dez negrinhos de Agatha Christie, numa carta para
seu colega da Black Mask, George Harmon Coxe.
A
Frederick Lewis Allen, da Harper’s Magazine, ele se queixa dos elogios
meio erráticos que vem recebendo, inclusive de W. H. Auden, e comenta o quanto
é difícil escrever com naturalidade quando se sente o peso dessas expectativas.
Ele diz:
Aqui estou eu agora, na metade de um novo romance
sobre Marlowe, divertindo-me um pouco (até empacar de novo) e de repente me
aparece esse tal de Auden e diz que estou escrevendo sérios estudos a respeito
de um ambiente criminal. E agora fico olhando para cada coisa que escrevo e
dizendo a mim mesmo: Lembre-se, meu velho, isso tem que ser um sério estudo de
um ambiente criminal. Você está sendo sério? Não. Isso é um ambiente criminal?
Não, somente a corrupção mediana da vida, com o ângulo melodramático um pouco
exagerado, não porque eu seja maluco pelo melodrama em si, mas porque sou
realista o bastante para conhecer as regras do jogo.
Em
outra carta, Chandler se queixa da mola desenhada pelo ilustrador numa das
capas mais famosas das edições de bolso do romance:
Há
uma longa carta para seu velho amigo e editor britânico, Hamish Hamilton, onde
o escritor conta detalhadamente os problemas de sua vida doméstica, com a
doença de sua esposa Cissy se agravando a cada ano. E uma sabatina feita por
Alex Barris, à qual ele responde com inusitada deferência, falando fatos
biográficos, gostos, manias, opiniões.
Adeus, minha querida, era tido em alta conta pelo autor (numa das
cartas aqui transcritas ele diz: “Acredito que Adeus, minha querida será
considerado o meu melhor livro.” É um
dos seus enredos mais bem articulados, e parte de uma estrutura que Chandler
voltaria a usar em O longo adeus: duas investigações paralelas em que
Philip Marlowe se envolve, e que depois revelam pertencer a uma única trama. Os
personagens são vívidos, a narrativa principal tem algumas transversais sem
saída (histórias que se cruzam com a principal, sem ter a ver com ela) que
ajudam a desnortear o leitor, sem deslealdade.
O
diálogo, um dos maiores fatores do sucesso inicial de O sono eterno,
voltou neste segundo romance de Chandler com toda a sua naturalidade e malícia.
Marlowe está à procura de informações, aborda o porteiro de um prédio e a certa
altura diz:
“Mostre as cartas”, disse eu.
“Posso ler pra você um capítulo da Bíblia ou lhe pagar um drinque. Você quem
diz.” “Irmão, eu acho que prefiro ler a Bíblia quando estou no aconchego do meu
lar.”
Um
sujeito esnobe, metido a artístico, recebe Marlowe em sua casa. O detetive se
detém na sala para olhar uma escultura modernosa, e:
“Uma peça interessante”, disse
ele, negligentemente. “Eu a obtive há poucos dias. É o Espírito da Aurora,
de Asta Dial.”
“Pensei que fosse o Duas
Verrugas numa Poupança, de Klopstein”, disse eu.
Bay
City (a cidade imaginária, inspirada em Santa Monica) aparece em vários livros
como um centro de corrupção, e Marlowe se explica:
“Tudo bem, é uma cidade boa. Tanto quanto Chicago.
Você pode viver nela um tempão e não ver nenhuma metralhadora. Claro, é uma
cidade legal. Provavelmente não é mais corrupta do que Los Angeles. Mas você só
pode comprar um pedaço de uma cidade realmente grande. Uma cidade do tamanho
dessa aqui pode ser comprada inteira, com a embalagem original e embrulhada em
papel de presente. Essa é a diferença. É isso que me faz querer cair fora.”
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