Um problema de xadrez, desses que aparecem na seção de variedades de um grande jornal diário (me dá prazer o fato de ainda poder usar referências dessa natureza), é uma pequena obra de ficção enxadrística. Como num romance que se inicia, imaginamos, ao ver o problema, a existência de uma imensa teia de narrativas prévias, não-contadas, que desaguam naquela posição das peças, assim como na literatura imaginamos mil histórias anteriores ambientadas no universo que se põe em movimento quando lemos “Capítulo 1”.
Um romance é uma história que vai acontecer, e um problema
de xadrez é uma história de que não vimos o começo mas vamos ter que adivinhar
seu possível fim. Teoricamente seria
possível prolongar indefinidamente aquela mini-partida, mas a certeza da
existência de uma solução radical, uma guilhotina instantânea, leva o jogador a
não descansar enquanto não a encontra.
Jogar xadrez é um duelo intelectual, uma relação densa e
aguerrida entre duas mentes. Já um
problema de xadrez é um prazer solitário.
Uma mini-partida abstrata entre a mente que publicou o problema no
jornal, e a mente que vai tentar resolvê-lo.
Parece muito com a literatura, e parece mais ainda com a literatura
policial. O enigma foi armado, as
pistas estão ali na página, visíveis a qualquer leitor. O xadrez solitário de Marlowe é um detalhe
sutil de Chandler, fazendo uma homenagem discreta aos grandes mestres do
romance detetivesco.
Comecei ontem, 14 de setembro, a tradução de The Little
Sister, que provavelmente terá o título A Irmãzinha. Não é um dos melhores títulos de Chandler,
embora mantenha a linha de simetria já empregada em The Big Sleep e The
High Window, e cuja quarta instância seria The Long Goodbye.
Quando a editora Alfaguara/Objetiva me propôs a tradução
de 7 livros de Chandler (seis romances e uma coletânea de contos), um dos
motivos que me levaram a aceitar foi a possibilidade de traduzir livros que eu
ainda não tinha lido. Não sou um desses leitores “completistas”, que quando
admiram um autor não descansam enquanto não devorarem tudo que ele
publicou. Eu gosto de ir convivendo.
Tem dezenas de livros de meus autores preferidos que eu talvez nunca venha a
ler, mas não tenho pressa, estou guardando, porque preciso de ineditismo de vez em quando para
enriquecer a convivência.
Quando veio a proposta de Marcelo Ferroni eu ainda não
tinha lido Farewell, my Lovely (1940), The Long Goodbye (1953) nem The Little Sister (1949).
Já traduzi os dois primeiros, que são excelentes, livros curiosamente muito
parecidos em alguns aspectos e diferentes em outros.
E agora vou traduzir, sem ter lido, The Little Sister
(1949), que a crítica nunca incensou muito e de cuja história só tenho a
lembrança difusa de um filme que vi 30 anos atrás num Corujão qualquer. Fui
conferir agora: trata-se de um filme do qual não lembro rigorosamente nada, a
não ser uma cena de Marlowe chegando às escondidas, durante a noite, a uma casa
no meio do mato: Detetive Marlowe em ação (“Marlowe”, 1969, direção de
Paul Bogart, com James Garner).
Aliás... minto. É nesse filme que Bruce Lee visita o escritório de
Philip Marlowe e faz ali uma intervenção demolidora, e não estou sendo metafórico.
Deve ter no YouTube ou por aí.
Há duas estratégias opostas (não são as duas únicas) para
traduzir um livro. A primeira é a estratégia invasiva: parar tudo e ler o livro
a ser traduzido, principalmente se for obra de ficção, em regime de tempo
integral e dedicação exclusiva, até ficar encharcado dele. Conforme o caso, ir logo
assinalando trechos difíceis e merecedores de maior atenção. Ter tudo em mente,
principalmente o desfecho. Já começar a traduzir sabendo como o livro acaba, ter
pensado bastante a respeito, ter lido alguma coisa sobre o livro (quando é o
caso).
A outra é a estratégia infiltradora, ou de stealth. É ir lendo e traduzindo ao mesmo tempo, no
escuro, sem saber nada além da lembrança de um filme que é primo distante do
livro que está sendo agora dissecado linha por linha. Muitas vezes essa
estratégia requer uma revisão cuidadosa, porque oscilações de interpretação, de
sentido e outras pesam sobre o jeito de traduzir, e quando sabemos no final o
que de fato era aquilo é preciso voltar e entender melhor aquele trecho do
original.
Gregory Rabassa traduziu para o inglês obras como Cem
Anos de Solidão de Garcia Márquez, O Jogo da Amarelinha de Julio
Cortázar e Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis. Um amigo
meu, norte-americano, disse certa vez que gostaria de saber espanhol para
escrever em espanhol e ser retraduzido para o inglês por Rabassa. Seu livro de
memórias If This Be Treason (Nova York: New Directions, 2005) fala sobre
sua formação como tradutor e depois comenta sucessivamente várias das obras que
traduziu, como foi o processo, o que acha do autor, etc. Aqui no meu blog Mundo Fantasmo faço uma
breve anotação sobre esse livro, onde Rabassa explica por que prefere começar a traduzir (mesmo um romance complexo) "no escuro", sem ter lido o livro.
Quem começa a traduzir já sabendo como acaba o livro (no
caso de um romance policial, “já sabendo quem é o assassino”) se põe na posição
de um autor, que concebe toda a trama, fica com ela bem clara na imaginação,
esfrega as mãos animado e começa a escrever. Quem começa a traduzir
rigorosamente “do zero”, resolvendo frase a frase à medida que se apresentam,
se põe na posição do detetive, que desembarca no plot sabendo que
precisa prestar atenção a tudo, porque se existe fair play no universo
da literatura (coisa que jamais existiu no mundo real cá fora) a solução está escondida em algum canto.
The Little Sister começa com uma cliente, que nem sequer é loura, chegando
no escritório de Marlowe, onde este acaba de matar uma mosca. Não é uma loura fatal. É uma moça que parece uma bibliotecária, e
que carrega no ombro “uma dessas bolsas quadradas e desajeitadas que fazem a
gente pensar numa irmã de caridade
levando primeiros socorros para os feridos”. Aí está a capa da primeira edição do livro, cuja ilustração é
de um realismo digno dos romances de Theodore Dreiser.
Vale lembrar que The Little Sister é o quarto
romance da carreira de Philip Marlowe. Àquela altura, já tinham sentado na
cadeira dos clientes do em seu escritório uma mulher fatal como Vivian Regan em
The Big Sleep e uma garota tomboy dessas por quem todo mundo torce, como Anne Riordan em Farewell,
my Lovely. Na Irmãzinha, quando a
moça se apresenta a Marlowe (ela liga antes, e aparece lá depois) é precedida por uma curiosa reflexão do detetive:
Lá estava ela. Nem precisou abrir a boca para eu saber de quem se tratava. E nunca ninguém pareceu tão pouco com Lady Macbeth.
Chandler sempre achou insatisfatórias tanto as capas
quanto as vendagens dos seus livros pela editora de Alfred Knopf, o editor que
acreditou nele como “o novo Hammett”.
Aqui vão reproduções das capas originais, pela Knopf, dos seus quatro primeiros livros:
Tudo isto tem que ser julgado de acordo com o panorama de
projetos gráficos da época, linguagens de época, texturas, cores, tudo. Mas
nenhuma dessas capas me passa uma idéia tão clara do conteúdo como estas
quatro, dos livros de bolso que de 1943 em diante fizeram a fama de Chandler.
Estas, sim, têm o espírito dos livros. Ou será que nos acostumamos a ler os
livros pensando nelas?